Alguns testemunhos anteriores ao Vaticano I

Tradução das pp. 107-111
do estudo do Pe. Bernard LUCIEN:
L’Infaillibilité du magistère ordinaire et universel de l’Église
[A Infalibilidade do Magistério Ordinário e Universal da Igreja]
(Nice: Éditions Association Saint-Herménégilde,
Documents de Catholicité, 1984, vi+158p.)

 

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51. Santo TOMÁS DE AQUINO:

[(Nota de Rodapé.) Para maiores detalhes sobre a posição de Santo Tomás, poder-se-á consultar: LA TRADITION. Révélation – Écriture – Église selon saint Thomas d’Aquin, por Étienne Ménard o.p., DDB, 1964.]

“A Igreja é numericamente a mesma que existia então (no tempo dos Apóstolos) e que existe agora; pois a mesma é a fé, e os mesmos os sacramentos da fé, a mesma a autoridade, a mesma a profissão (da fé).”
(Quod. XII, q. 13, a. 1)

“Considerando-se a providência divina que dirige Sua Igreja pelo Espírito Santo para que ela não erre, como Ele mesmo prometeu – João 10, 26 – que, o Espírito sobrevindo, Ele ensinaria toda a verdade, entenda-se, sobre as coisas necessárias à salvação; é uma certeza que é impossível que o juízo da Igreja universal erre sobre as coisas que tocam à fé.”
(Quod. IX, q. 8, a. 1)

“A Igreja universal não pode enganar-se, pois ela é governada pelo Espírito Santo, que é o Espírito da verdade: o Senhor, com efeito, prometeu-O a seus discípulos, ao dizer (João XVI, 13): ‘Quando ele vier, o Espírito de verdade, ele vos ensinará toda a verdade’. Ora, o símbolo é editado pela autoridade da Igreja universal. Logo, ele não contém nada que não convenha.”
(II-II, q. 1, a. 9, s.c.)

 

2. F. SUAREZ: Sobre a Igreja e sobre o Papa, edição de Antonio Vargas-Machuca, Arch. Teol. Gran. 30, 1967, pp. 245-331.

“QUESTÃO N.º 11. Podem todos os bispos ou doutores, ao transmitirem a doutrina da fé, cair conjuntamente numa doutrina errônea?

“Os hereges o afirmam de maneira absoluta. Primeiro, porque pensam de igual maneira acerca da Igreja universal; segundo, porque negam que todos os bispos e doutores ou pastores representem a Igreja universal, e, portanto, [negam] que haja neles algum poder de definir as coisas da fé, mas atribuem-no aos reis e príncipes seculares (…).
(…)
“OBSERVAÇÕES: 1.º O conjunto dos bispos pode ser considerado de duas maneiras: antes de tudo, legitimamente reunidos, e definindo as coisas de fé em virtude da autoridade e poder que eles possuem; aí então, a questão coincide com a do concílio geral – ver abaixo. Depois, pode-se falar de todos os bispos em si mesmos, ou seja tais como existem agora, cada qual ensinando e governando suas ovelhas; e é disso que se trata aqui: pode porventura suceder, por acidente ou voluntariamente, mediante cartas ou por outro meio, que eles se ponham todos de acordo sobre um erro contrário à fé?

“2.º Trata-se aqui dos bispos e doutores enquanto ensinam e propõem às suas igrejas aquilo que deve ser crido; pois, se forem considerados somente como pessoas privadas, podem admitir o que é falso e enganar-se, pois são homens, e não há nenhuma promessa divina que a isso se oponha (…).

“3.º Cumpre notar que esse erro pode ser entendido, seja como ligado à contumácia e à heresia, seja como ligado à ignorância, de sorte que todos estimassem que alguma coisa é de fé, quando na realidade é falsa.

“DIGO, EM PRIMEIRO LUGAR, que todos os bispos e doutores não podem errar na fé de maneira a induzir toda a Igreja em erro contrário à fé; e, portanto, eles não podem ensinar e propor o erro à Igreja universal, de forma que toda ela seja obrigada a alguma coisa de falso. Essa conclusão mostra-se inteiramente certa, pois decorre necessariamente das promessas feitas à Igreja universal acerca da infalível verdade que ela viria a conservar sempre; assim também, se todos os pastores da Igreja pudessem enganar-se de algum modo, e obrigar a alguma coisa de falso, poder-se-ia pôr em dúvida ou tudo, ou muito do que a Igreja agora crê, pois quase tudo lhe é proposto dessa maneira.

“Mas é preciso observar que essa conclusão é uma certeza e é de fé, principalmente na medida em que inclua a cabeça, o Supremo Pontífice, junto com os outros, como ficará evidente na questão seguinte. Pois, pondo-se à parte o Papa, e falando-se de todos os outros, a conclusão não chega a ser certa, mesmo que se ajuntem os doutores aos bispos, pois para além de todos estes há na Igreja uma regra infalível da fé, à qual os fiéis estão principalmente obrigados a aderir; e não resulta claramente que haja em todos aqueles uma regra infalível da fé, ou uma promessa certa do Espírito Santo.”
(p. 274ss.)

 

53. São ROBERTO BELLARMINO: Sobre os Concílios e sobre a Igreja; Lib. III: Sobre a Igreja militante espalhada por toda a terra, “Opera Omnia”, ed. Pedone Lauriel, 1872, tomo II.

“Cap. XIV: A IGREJA NÃO TEM COMO ERRAR.
(…)
“Calvino, então, diz que essa proposição, A Igreja não pode errar, é verdadeira, caso seja compreendida com uma dupla restrição. (…)

“A segunda restrição é esta: A Igreja não pode errar, isso deve ser entendido unicamente da Igreja universal, e não ser estendido aos bispos, que são a Igreja de maneira representativa, como dizem os teólogos católicos; (…)

“Nossa posição, portanto, é que a Igreja não pode errar de jeito nenhum, nem nas coisas absolutamente necessárias, nem nas outras coisas que ela nos propõe a crer ou fazer, quer essas coisas estejam expressamente na Escritura ou não estejam. E, quando dizemos que a Igreja não pode errar, entendemos isso tanto do conjunto dos fiéis quanto do conjunto dos bispos, de modo que o sentido da proposição, A Igreja não pode errar, é: aquilo que todos os fiéis creem como de fé é necessariamente verdadeiro e de fé; e, de igual maneira, aquilo que todos os bispos ensinam como pertencente à fé é necessariamente verdadeiro e de fé. (…)

“O fato de que mesmo aqueles que constituem a Igreja ‘representativamente’ não possam errar prova-se, primeiro, porque se todos os bispos se enganassem, a Igreja toda também se enganaria, pois as pessoas estão obrigadas a seguir seus pastores, segundo a palavra do Senhor, Luc 10: quem vos ouve a mim ouve, e Mat 23: tudo o que eles dizem, fazei-o. Em seguida, com a Carta do Concílio de Éfeso a Nestório, em que a este se impõe, se ele quiser pôr-se de acordo com a Igreja, afirmar com juramento que ele pensa como pensam os bispos do Oriente e do Ocidente. (…)”
(pp. 98-99)

 

54. MELCHIOR CANO: Sobre os lugares teológicos, Liv. IV, cap. IV, em Migne, Theologiæ Cursus Completus, tomo I, 1839.

“Eis, pois, nossa terceira conclusão: Não somente a Igreja antiga não pôde errar na fé, como também a Igreja que existe agora não o pode, nem tampouco a Igreja que existirá até o fim dos tempos.

“Em quarto lugar, não somente a Igreja universal, ou seja o conjunto dos fiéis, tem sempre esse Espírito de verdade, mas os cabeças e pastores da Igreja também têm esse mesmo Espírito. Dissemos, com efeito, que a voz da Igreja entende-se tanto do povo fiel, quanto dos pastores da Igreja. As primeiras conclusões, pois, demonstravam  que tudo o que a Igreja, ou seja o conjunto dos fiéis, crê, é verdadeiro; já esta [conclusão] afirma que os pastores e doutores da Igreja não podem errar na fé, mas que tudo o que eles ensinam ao povo fiel, tocante à fé cristã, é verdadeiríssimo. (…) Afirmamos, pois, que todos os pastores e doutores não podem jamais se afastar da fé.”
(col. 238-239)

 


NOTA DE RODAPÉ FINAL

 

Examinemos, para terminar este estudo, uma dificuldade que foi levantada numa revista de vulgarização. Indagou-se se a afirmação do Decreto para os Armênios (Concílio de Florença, Bula Exultate Deo, 22 nov. 1439) sobre o sacramento da Ordem não ofereceria um caso de erro do magistério ordinário e universal.

Esse documento declara, com efeito (D. 701):

O sexto é o sacramento da ordem, cuja matéria é aquilo por cuja tradição a ordem é conferida: como o presbiterado é transmitido pela porreção do cálice com o vinho e da patena com o pão. (…) A forma do sacerdócio é a seguinte: ‘Recebei o poder de oferecer o sacrifício na Igreja para os vivos e os mortos, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo’.”

Ora, na Constituição Apostólica Sacramentum Ordinis, de 30 nov. 1947, Pio XII declara, com a sua suprema autoridade, que a matéria do sacerdócio é constituída unicamente pela imposição das mãos, sendo a forma o prefácio que a acompanha, e que significa sem equívocos os efeitos do sacramento.

Sem entrar numa discussão detalhada, apresentemos três observações, suficientes para afastar a “objeção”.

1.º) Primeiro que tudo, cumpre observar que, em seu princípio mesmo, uma tal “objeção” é contrária à fé.

Está demonstrado, por argumentos próprios e objeto de certeza, que a infalibilidade do magistério ordinário e universal é uma verdade revelada, infalivelmente ensinada pela Igreja. Logo, é IMPOSSÍVEL que um fato histórico ponha essa doutrina em questão. Admitir a possibilidade contrária já é duvidar da fé, e, portanto, não ter mais fé (cf. Vaticano I, D. 1794).

Eis, de maneira semelhante, o que afirmou o relatório Schrader-Maïer (cf. supra p. 15 [*]), diante das objeções “históricas” apresentadas no concílio contra a infalibilidade do Papa:

Segundo documentos que excluem toda e qualquer dúvida, como foi declarado mais acima, a infalibilidade dos Romanos Pontífices é uma verdade divinamente revelada; logo, não pode suceder que algum dia se demonstre que ela seja falsa a partir de algum fato histórico, seja ele qual for; mas, se fatos da história lhe forem opostos, devem estes certissimamente ser tidos por falsos, na medida em que se mostrem contrários a ela.
(Mansi 52, 24 C-D)

Um católico não pode, portanto, se indagar se determinado fato é ou não é conforme a um dogma certificado pela Igreja; ele pode somente se indagar (eventualmente) como é que tal fato, supostamente estabelecido com certeza, é conforme ao dogma (ou não lhe é contrário).

E, no aguardo da solução, ELE NÃO PODE DE MANEIRA NENHUMA SUSPENDER SEU ASSENTIMENTO DE FÉ ao dogma respectivo (cf. Vaticano I, D. 1815).

[(*) N. do T. – O A. faz referência à notícia seguinte, que consta da aludida pág. 15:
“O debate sobre a Infalibilidade do Papa era, tanto para o público como no próprio Concílio, a questão candente do dia. Também Padres em grande número pediram que se apressasse essa discussão. E foi assim que, em 9 de maio de 1870, um novo projeto foi apresentado ao Concílio (M. 52, 4-7). Tratava-se de um esquema com quatro capítulos, intitulado Primeira Constituição sobre a Igreja; seus três primeiros capítulos eram tirados do capítulo XI do esquema de 21 de janeiro (capítulo concernente ao Primado do Papa), o quarto sendo o capítulo adicional de 6 de março (Infalibilidade do Papa). Um importante comentário, redigido por dois teólogos da Deputação da Fé (os Padres Schrader e Maïer) acompanhava esse projeto (M. 52, 8-28). Uma Segunda Constituição sobre a Igreja devia completar o ensinamento conciliar. O projeto foi redigido pelo Padre Kleutgen, a partir das observações escritas dos Padres sobre os dez primeiros capítulos do esquema de 21 de janeiro. Mas o concílio será interrompido antes de que se possa discutir esse ‘projeto Kleutgen’. Esse texto apresenta, contudo, grande importância para o conhecimento do pensamento dos Bispos reunidos no Concílio.”]

2.º) Quanto à questão do Sacramento da Ordem, o Papa Pio XII dá ele mesmo os elementos essenciais da resposta, no próprio texto de sua constituição. Longe de insinuar que o Concílio de Florença se tenha enganado, ele observa:

Ninguém ignora que a Igreja Romana sempre considerou válidas as ordenações conferidas pelo rito dos gregos, sem a tradição dos instrumentos, de sorte que, no próprio Concílio de Florença (…) não se impôs de maneira nenhuma aos gregos que mudassem seu rito de ordenação, ou que nele inserissem a tradição dos instrumentos; mais ainda, quis a Igreja que, na própria Roma, os gregos fossem ordenados segundo o rito próprio deles. Donde se extrai que, segundo o pensamento do próprio Concílio de Florença, a tradição dos instrumentos não é exigida para a substância e a validade desse sacramento por vontade do mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo. Que, se por vontade e preceito da Igreja, essa tradição foi, numa época, necessária para a validade, todos sabem que a Igreja pode mudar e abrogar aquilo que ela instituiu.
(A.A.S. 28 de janeiro de 1948)

Assim, Pio XII cuida de observar que não há oposição de contradição entre o Concílio de Florença e a decisão dele:

O concílio não afirmou que a tradição dos instrumentos pertencia por instituição divina à essência do sacramento.

Pio XII não nega que a Igreja possa ter integrado essa tradição dos instrumentos ao rito, de sorte que ela condicionasse sua validade, e que ela servisse ela mesma de instrumento à transmissão da graça.

Vê-se, pois, que fica excluído tirar desse “caso” uma objeção contra a infalibilidade do magistério ordinário e universal.

3.º) Quanto às explicações teológicas desse fato, elas não faltam. Apresentemos simplesmente aqui a do Pe. Garrigou-Lagrange (De Eucharistia, pp. 414-415):

“Princípio de solução cada vez mais admitido: segundo Billuart e, mais recentemente, o Cardeal Billot, Hugon, Hervé e diversos outros, o princípio de solução é o seguinte: Cristo não instituiu a matéria desse sacramento determinando especificamente que esta ou aquela coisa seria a matéria, mas determinando de maneira geral que ele haveria de ser conferido mediante sinal sensível significativo do poder transmitido. Isso basta à instituição do sacramento por Cristo, pois todo sacramento é ‘especificado’ propriamente pelo efeito ao qual ele está essencialmente ordenado. Assim, Cristo deixou à Igreja, tal como com a confirmação, a determinação última da matéria do sacramento da ordem.”

 

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PARA CITAR ESTA TRADUÇÃO:

Rev. Pe. Bernard LUCIEN, Alguns testemunhos anteriores ao Vaticano I, 1984, trad. br. por F. Coelho, São Paulo, out. 2013, blogue Acies Ordinata.

de: pp. 107-111 de: B. LUCIEN, L’Infaillibilité du magistère ordinaire et universel de l’Église, Nice: Éditions Association Saint-Herménégilde, Documents de Catholicité, 1984, vi+158p.

https://magisteriodaigreja.com/alguns-testemunhos-anteriores-ao-vaticano-i/