Pode em algum caso ser legítimo suspender assentimento interior ao conteúdo doutrinal de decretos das Congregações Romanas?

 

É fato que alguns teólogos de grande autoridade reconhecem que, em casos excepcionais, um dado indivíduo nem sempre está obrigado ao assentimento interior a decretos não-infalíveis referentes a doutrina. Outros teólogos parecem não reconhecer isto; ao menos, não conseguimos encontrar menção alguma a isto no autorizadíssimo De Divina Traditione et Scriptura (Roma, 2.ª edição, 1875), do Cardeal Franzelin. E a Santa Sé em parte alguma reconheceu isto e parece, na prática, falar como se assim não fosse. Por outro lado, é compreensível que haja relutância em reconhecer o que só pode ser um caso extremamente excepcional, para evitar encorajar qualquer Fulano, Sicrano e Beltrano a considerar a si mesmo bastante erudito e às suas circunstâncias suficientemente singulares, para que ele possa dissentir daquilo que a Santa Sé lhe diz que ele deve aceitar.

“Não é, portanto, necessário assentir [a preceitos doutrinais não-infalíveis] de tal maneira a julgar o ensinamento deles infalivelmente verdadeiro ou falso, mas, sim, de maneira a julgar que a doutrina contida no juízo em questão é segura, seja ela como tal, seja nas circunstâncias existentes, e que ela deve ser adotada por nós com motivo de obediência.

“Mas, se razões extremamente graves porventura aparecessem a algum homem douto, ele poderia então suspender o assentimento sem temeridade e sem pecado durante a pendência do recurso ao juízo do Romano Pontífice.

“Entrementes, porém, obediência exterior é necessária também a ele, para evitar escândalo.”

(Padre Sixtus Cartechini, De Valore Notarum Theologicarum et de Criteriis ad Eas Dignoscendas [Sobre o valor das notas teológicas e o critério para discerni-las – obra inestimável, redigida para uso dos auditores das Congregações Romanas], Roma, 1951, p. 115-6)

A distinção feita pelo Padre Cartechini parece-nos encontrar algum apoio no Motu Proprio de São Pio X respeitante à autoridade dos juízos da Pontifícia Comissão Bíblica (18 de novembro de 1907 – Denzinger 2113). Ao mesmo tempo em que insiste que todos estão obrigados em consciência pelo dever de obediência a submeter-se aos juízos da Pontifícia Comissão Bíblica, assim como a todos os demais decretos doutrinais das Sagradas Congregações aprovados pelo Papa, o Motu Proprio declara que grave pecado de desobediência e temeridade é necessariamente cometido por todo aquele que vier a se opor a tais juízos com palavras ou por escrito – uma observação que acentuadamente evita condenar alguém que observe silêncio respeitoso mas, por alguma razão especial fundada em conhecimento e avaliação de especialista acerca do caso, considere-se incapaz em consciência de aceitar o juízo em questão como verdadeiro.

Embora seja evidente que esse princípio pode prestar-se a enorme abuso se amplamente publicado entre pessoas leigas incapazes de julgar fidedignamente se elas têm realmente fundamentos suficientes para recusar o assentimento (improbabilíssimo, a não ser que sejam extremamente doutas) e talvez incapazes até de distinguir se o decreto que hesitam em aceitar pode não ser, de fato, infalível por si mesmo ou por conta do fato de que a doutrina que ele contém pode ter sido ensinada repetidas vezes pelo Magistério Ordinário por outros meios também; sem embargo, o princípio não parece irrazoável em si mesmo. O que deve ser lembrado sempre é que os decretos de que estamos tratando se enquadram numa categoria especial que pode ser considerada a meio caminho entre o ensinamento doutrinal do Magistério, por um lado, e os preceitos disciplinares, por outro. Todos sabem que o ensinamento doutrinal do Magistério deve simplesmente ser crido como verdadeiro, pois Cristo garantiu que ele é verdadeiro; e todos sabem que preceitos disciplinares da Santa Sé devem simplesmente ser obedecidos, pois desobediência ao Vigário de Deus é invariavelmente desobediência a Deus mesmo, exceto no caso raro de uma ordem privada do Papa exigindo cometer um ato imoral, como provavelmente aconteceu na famosa disputa entre o bispo Roberto de Grosseteste e o Papa Inocêncio IV no século XIII. Mas pronunciamentos sobre doutrina emanados de Congregações Romanas com a aprovação do Papa são classificados pelo Padre Cartechini como “preceitos doutrinais”, noutras palavras como tendo o mesmo assunto do ensinamento formal, mas como compartilhando do motivo e natureza de submissão a eles com os decretos disciplinares. Ou, como explica o Cônego Smith (*), podemos dizer que tais decretos obrigam-nos a prestar assentimento ao conteúdo deles, mas com base na obediência e submissão, antes que diretamente com base na fé; e, por essa razão, quem rejeita tais decretos é réu de desobediência e insubordinação diretamente, e só indiretamente de pecado contra a fé na medida em que põe em risco sua própria ortodoxia confiando em seu próprio juízo privado mais que no juízo não-infalível da Santa Sé.

[(*) N do T. – Cf. Côn. George D. SMITH, “Tenho o Dever de Crer Nisso?” (orig. ingl. in: The Clergy Review, 1935, pp. 296-309), estudo transcrito integralmente, precedido de introdução, no Cap. 9 (“A força vinculante dos decretos não-infalíveis”, trad. br. em: “wp.me/pw2MJ-1co”) da mesma obra de J. S. Daly (The Theological Status of Heliocentrism – A qualificação teológica do heliocentrismo, 1997, 2.ª ed. rev. 2002) de que a presente tradução é o Cap. 11.]

Esse entendimento permite uma analogia útil, semelhante àquela já citada no artigo do Cônego Smith, com a atitude de uma criancinha perante a instrução recebida de seu pai. Uma criança que dissentisse da explicação de seu pai sobre as condições necessárias para plantação bem-sucedida de tomates ou que alegasse saber melhor que o pai como funciona um motor de combustão interna seria culpada de insubordinação e justamente repreendida. Se ela alegasse, em sua defesa, que o pai dela não é infalível, seria prontamente atalhada pela observação de que o seu pai é manifestamente muito mais competente do que uma criancinha em tais matérias e é, de todo o modo, a autoridade divinamente designada na família, da qual os filhos têm de aprender conforme a ordem estabelecida por Deus.

Até aqui, tudo bem. Mas a mesma analogia necessita reconhecer que raras exceções podem ocorrer. Mesmo uma criança de oito ou nove anos de idade (e os maiores teólogos da Igreja, nas relações deles com a Santa Sé, com a sabedoria coletiva e herdada que ela tem e com o esclarecimento e proteção sobrenatural de que ela desfruta, não são mais do que crianças de oito ou nove anos de idade com relação a seu pai) podem, numa ocasião em um milhão, estar certas onde seu pai esteja errado e ter certeza suficiente dos fatos que alegam para saber que isso é assim. E, num caso desses, a posição da criança tem de ser, quando possível, a de apresentar modestamente as razões de sua hesitação a seus pais, mas, em todo caso, a de não dissentir abertamente do juízo do pai até que o pai venha a admitir seu erro. E esta é, precisamente, a atitude que os teólogos como o Padre Cartechini permitem, em casos muito raros e muito excepcionais, ao douto especialista perante um preceito doutrinal da Santa Sé.

Agora, temos de frisar que não estamos oferecendo isto de maneira nenhuma como desculpa para Galileu no malogro dele em respeitar as ordens que a Santa Sé lhe comunicou em 1616, renunciando ao heliocentrismo e nunca mais falando ou escrevendo uma palavra em favor dele. Galileu não fez a mais mínima tentativa, nem em 1616 nem em 1633, de alegar que ele tivesse alguma razão avassaladora para pensar que o decreto não-infalível pudesse não estar certo e para a suspensão interior de assentimento; ele não fez a menor tentativa de convencer o Papa das provas dele. Pelo contrário, ele prontamente declarou, em 1616, que ele rejeitava o heliocentrismo de coração, e em 1633 ele insistiu (confrontado com provas esmagadoras) que ele sempre respeitara isto internamente. E, com efeito, quase todos os escritores católicos que tratam do caso Galileu, ainda que sejam eles próprios heliocentristas,[32] concordam que Galileu não tinha provas irresistíveis em favor do heliocentrismo de maneira alguma, e de fato que os argumentos dele eram excessivamente débeis, o principal dos quais sendo universalmente reconhecido, por centenas de anos, como tendo sido não meramente fraco, como completamente inválido e mesmo fátuo.[33]

[(32) Escrevendo subsequentemente à legislação permissiva dos Papas Bento XIV e Pio VII.

(33) Referimo-nos, é claro,  ao argumento dele baseado no movimento das marés, em que ele deu um jeito de fechar os olhos completamente para o fato de que o fluxo e refluxo da maré ocorre não uma, mas duas vezes no intervalo de cada vinte e quatro horas!]

A razão por que fazemos referência a este princípio é para explicar como foi possível ao Papa Bento XIV reabrir uma questão que fora definitivamente encerrada por seu predecessor e reavaliar as provas, à luz dos escritos de Newton e outros, em vez de rejeitá-la a priori como sem valor em vista da oposição dela àquilo que a Santa Sé já tinha determinado na matéria. E isso, consideramos que é facilmente alcançado, não somente para aqueles que aceitam a excepcional legitimidade de suspender o assentimento deste modo, como até mesmo para aqueles que reconhecem o que pensamos ser inevitavelmente o caso: a saber, que a legitimidade de suspender o assentimento em casos tais é, pelo menos, teologicamente provável.

 

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PARA CITAR:

John S. DALY, Pode em algum caso ser legítimo suspender o assentimento interior ao conteúdo doutrinal de decretos das Congregações Romanas?, 1997/2002, trad. br. por F. Coelho, São Paulo, out. 2013, blogue Acies Ordinata, http://wp.me/pw2MJ-262.

https://magisteriodaigreja.com/pode-em-algum-caso-ser-legitimo-suspender-assentimento-interior-ao-conteudo-doutrinal-de-decretos-das-congregacoes-romanas/ 

De: “Can It Ever Be Lawful to Suspend Interior Assent to the Doctrinal Content of Congregational Decrees?”, cap. 11 do livro do A., The Theological Status of Heliocentrism [A qualificação teológica do heliocentrismo], 1997, 2.ª ed. rev. 2002.