A Crise Impossível
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Reverendos Padres, Senhoras e Senhores,
Esta conferência dedica-se a apresentar os argumentos em favor do sedevacantismo. Antes de começar, eu gostaria de me certificar de que todos nós sabemos o que o sedevacantismo é, e o que ele não é. O sedevacantismo é a convicção de que a Santa Sé está vacante. Se você crê que a Igreja Católica hoje não tem Papa – não tem um verdadeiro, válido e legítimo sucessor de São Pedro – você é sedevacantista; do contrário, você não é.
Enfatizo que o sedevacantismo não é um movimento. Há sedevacantistas que só vão à Missa de padres sedevacantistas; há outros que vão alhures, e outros ainda que nem vão à Missa. Semelhantemente, é claro, há pessoas que vão à Missa de padres sedevacantistas sem serem, elas próprias, sedevacantistas. Assim, o sedevacantismo não diz respeito a com quem você se associa, assim como não se trata de se você pensa que as mulheres devem ou não usar calças, ou sua opinião sobre rastros químicos ou o estado dental do Arcebispo Thuc; trata-se de se você reconhece ou não João Paulo II como cabeça visível da Igreja de Cristo.
E, dado que é uma convicção, não um movimento, o sedevacantismo como tal não tem nenhum objetivo nem exerce qualquer atividade específica. Se vocês vieram aqui hoje na esperança de nos ouvir falar sobre o meio mais eficaz de restaurar a ordem católica, ou de aumentar o número de católicos tradicionais, ou de conseguir mais assinantes para revistas tradicionais, vocês ficarão desapontados. O escopo das duas conferências que vocês ouvirão não é sobre se o sedevacantismo é útil. Restringe-se a se o sedevacantismo é verdadeiro. E, se é verdade que João Paulo II não é o Vigário de Cristo, essa verdade continuará sendo obstinadamente verdadeira, gostemos ou não, e bem independentemente do que fizermos a respeito. Um escritor proeminente do Remnant disse, recentemente, que o sedevacantismo vai matar o movimento tradicionalista. Isso não é verdade, mas, o que é ainda mais importante, isso não é relevante. Não se vocês amam a verdade.
Há muitos fatos que são pouco conhecidos e muito inconvenientes, mas não deixam de ser fatos. Se você descobre um caroço tumoral debaixo do braço, ou percebe que suas despesas mensais estão excedendo a sua renda, ou que há um barulho e odor estranhos saindo do motor do seu carro quando você dirige… você normalmente não considera se o câncer, a falência ou um bloco de cilindros rachado são desejáveis ou populares: você quer saber a verdade, não importa o quão inconveniente ela seja. E a verdade será baseada em provas. No caso da verdade católica, será baseada no que a Igreja nos diz por meio dos ensinamentos dela, das leis dela, dos teólogos dela, etc.
A palavra sedevacantista, é claro, é um neologismo: uma palavra inventada no fim dos anos 70. É um rótulo conveniente, assim como a palavra tradicionalista; os de fora sempre inventam rótulos convenientes para identificar os grupos, e esses rótulos frequentemente colam. O importante é ir além do rótulo e entender o que ele significa. Eis um teste: se você entendeu corretamente o que a palavra sedevacantista quer dizer, você vai se dar conta de que, toda vez que um Papa morre, o mundo católico inteiro é sedevacantista. E, se você não é ainda sedevacantista, então você é sede-ocupantista. É uma coisa ou outra.
E é claro que o sedevacantismo não tem nada a ver com rejeitar o Papado. Nós aceitamos todos os Papas, mas não pensamos que Karol Wojtyla seja um. E baseamos essa convicção no ensinamento e leis da Igreja Católica.
Hoje vocês ouvirão duas conferências sobre o sedevacantismo, e cada uma delas apresenta um argumento básico diferente, porque há duas maneiras fundamentalmente diferentes de provar que João Paulo II não é Papa. Quero que elas estejam claramente distinguidas na cabeça de vocês. [Nota do Editor (da revista The Four Marks, edição de abr. 2009): Versão amplamente expandida da outra conferência, dada por John Lane, encontra-se na pág. 5, continuando do mês passado.]
Suponham que alguém lhes ofereça um anel de ouro maciço, mas que, na realidade, é uma bijuteria. Há duas maneiras possíveis de mostrar que ele é fajuto. A primeira é mostrar que ele não possui alguma característica que o ouro precisa ter: sua gravidade específica ou sua reação ao ácido nítrico. A segunda é mostrar que ele na realidade é outra coisa, muito diferente do ouro e incompatível com ser ouro. Por exemplo, vocês passam um ímã sobre o objeto, e ele pula e gruda no ímã. Vocês sabem de imediato que vocês têm ferro e, portanto, não ouro maciço.
Considerando João Paulo, o Sr. Lane argumentará que ele é um herege público e que um herege público não pode, em nenhuma circunstância, ser Papa. Ele passará o ímã da heresia sobre Karol Wojtyla, e Karol Wojtyla pulará e grudará nele, mostrando-se pobre, férreo e propenso à ferrugem. Não tenho mais nada a dizer sobre esse argumento, que o Sr. Lane lhes apresentará com grande competência.
A minha tarefa não é mostrar que Karol Wojtyla é herege. Não é nem mesmo investigar, de modo algum, a causa por que ele não é Papa. É simplesmente mostrar que um verdadeiro Papa é impedido pela proteção do Espírito Santo de fazer o que K.W. faz, e que K.W., portanto, não pode ser Papa.
Fazer isso, de minha parte, envolverá também um tratamento considerável do corpo religioso que Karol Wojtyla encabeça: o corpo que chamou a si próprio de Igreja Conciliar. Pretendo mostrar que essa igreja também manifesta incompatibilidade essencial com o Catolicismo: que ela oficialmente e formalmente adotou doutrinas, costumes, leis e cerimônias que a Igreja Católica não somente faria mal em adotar, como também não teria como adotar.
Então, permitam-me dizer a minha argumentação em poucas palavras.
Afirmo que a Igreja mesma nos ensina que ela é infalível e indefectível, não somente nos ensinamentos do seu Magistério extraordinário, mas também no seu Magistério ordinário e universal; em suas leis, em sua liturgia e no ensinamento universal que ela comunica aos fiéis diariamente através de todos os meios pelos quais ela manifesta sua fé. Em parte alguma deles, pode ela ensinar erros que se oponham, ainda que indiretamente, à revelação divina; em parte alguma deles, pode ela contradizer o que ela sempre ensinou; em parte alguma deles, pode ela conduzir os fiéis rumo ao erro e o pecado ou para longe da verdade e da santidade.
E afirmo, em seguida, que a Igreja Conciliar faz todas essas coisas que a Igreja Católica não pode em nenhuma circunstância fazer. A liturgia, as leis, os ensinamentos e prática conciliares ordinários, unânimes e cotidianos são incompatíveis com a doutrina católica e estão seduzindo incontáveis almas para a heresia ou apostasia e a condenação eterna.
E, em estrita consequência lógica, a Igreja Conciliar não é a Igreja Católica, e o seu cabeça não é o Papa.
Ora, há diversas objeções que vocês podem querer fazer contra um argumento nessa linha, mas não há dúvida sobre qual seja a objeção mais comum por parte dos que sustentam uma posição mais ou menos na linha da FSSPX. É a objeção de que a minha alegação exagera o escopo da infalibilidade e indefectibilidade da Igreja e descreve como impossíveis coisas que são meramente indesejáveis e incomuns, mas não claramente contrárias a qualquer promessa divina.
Penso que esse é o ponto principal em litígio entre os tradicionalistas sedevacantistas e os tradicionalistas sede-ocupantistas. É por isso que citarei uma porção de altas autoridades sobre essa questão precisa.
Antes, porém, que eu o faça, recordemos os antecedentes históricos da divergência. Ao longo da década de 1960 até o começo dos anos 70, ocorreu aquilo que veio a ser chamado de “as mudanças na Igreja”. A Missa evoluiu através de uma série de breves estágios até se transformar numa cerimônia vernácula de tipo protestante. O catecismo ou desapareceu totalmente, ou foi substituído por textos que inculcam heresia. Todos os demais sacramentos mudaram também. Assim como mudaram as vestimentas, os hábitos de sacerdotes e religiosos, as cerimônias e tradições. Todas as condenações também cessaram… exceto daqueles que recusavam adotar as mudanças. O culto em comum com acatólicos, anteriormente pecado mortal, tornou-se lícito e até desejável. Nações cuja constituição dava posição privilegiada à Igreja fundada por Deus foram constrangidas a alterar sua constituição, removendo esses privilégios. Certas doutrinas desapareceram, especialmente as que dizem respeito à condenação eterna e à necessidade de pertencer à verdadeira Igreja. Doutrinas morais inconvenientes, se ainda chegavam a ser mencionadas, apareciam sempre com uma ressalva acerca dos supostos direitos mais altos da consciência. E tanta coisa mais.
E não havia como alguém ter entendido a natureza da crise desde o início. Seria um tolo quem culpasse alguém por não ter entendido, já em 1968, que estávamos, literalmente, em face de uma nova e falsa religião. Contudo, já em 1968 vigoravam as novas orações eucarísticas, assim como o novo rito de ordenação, e isso antes mesmo do chamado “Novo Ordo da Missa”.
A situação em 1969 até 1970 era que muitos padres e laicato viram-se na impossibilidade de, em consciência, aceitar o Novus Ordo, mas a possibilidade de que Paulo VI talvez não fosse verdadeiro Papa ainda não havia sido nem sequer ventilada. Para explicar e justificar a rejeição de leis e ensinamento aparentemente papais, o movimento tradicional emergente desenvolveu o hábito de enfatizar os limites da infalibilidade. Virou moda alegar que somente ensinamento ex cathedra era infalível e que as liturgias, encíclicas, etc., não tinham nenhuma proteção ou garantia especiais. Muito compreensível. Mas, infelizmente… flagrantemente contrário à doutrina católica, como logo veremos.
E, é claro, quem adota aquela posição se vê rapidamente numa posição que nem mesmo é coerente consigo mesma. Daí que vejamos tradicionalistas sede-ocupantistas protestando contra a recusa dos modernistas em aceitar a doutrina das encíclicas papais, por exemplo condenando a contracepção. Mas eles próprios alegremente rejeitam ou ignoram o ensinamento das encíclicas de seus papas pós-Vaticano II.
Então, temos amplo fundamento para reabrir a questão. Coloquemos de lado o hábito e o preconceito e recorramos, de mente aberta, ao que a própria Igreja ensinou sobre sua infalibilidade e indefectibilidade. Até onde a infalibilidade alcança? Comecemos pelo Concílio do Vaticano, de 1870. Todos sabemos que esse concílio definiu a infalibilidade das definições doutrinais ex cathedra. Teria ele dito ou sugerido que a infalibilidade limitava-se exclusivamente a elas?
Longe disso… Ele ensinou claramente que os católicos devem crer com fé divina em tudo aquilo que a Igreja ensina ser divinamente revelado, seja por um juízo solene [Magistério extraordinário] ou pelo Magistério ordinário e universal (Dz 1.792). Os dois são correlacionados. Comandam o mesmo nível de assentimento. São igualmente infalíveis. Então, por que o Vaticano I concentrou-se na infalibilidade do Magistério extraordinário papal? Simplesmente porque era a doutrina que, naquele momento, estava sendo posta em questão em alguns círculos, notavelmente na França.
A infalibilidade do Magistério Ordinário sob certas condições era uma verdade tão bem conhecida de todos os católicos, que não precisava de mais que breve menção. A infalibilidade da definição papal solene tinha de ser especialmente sublinhada.
Hoje, no movimento tradicional, o oposto parece aplicar-se. Até parece que, ao definir a infalibilidade do Magistério extraordinário do Papa, a Igreja condenara ao esquecimento o dogma da infalibilidade de seu Magistério ordinário e universal.
Na realidade, esse erro já vinha se introduzindo sorrateiramente bem antes do Vaticano II (Cônego Smith, “Must I Believe It?”, Clergy Review [“Tenho o Dever de Crer Nisso?”, Revista do Clero], anos 40):
“Não é de modo algum incomum encontrar a opinião, senão expressa ao menos cultivada, de que nenhuma doutrina deve ser considerada dogma de fé a não ser que tenha sido definida solenemente por um Concílio ecumênico ou pelo próprio Soberano Pontífice. Isso não é necessário de maneira nenhuma. É suficiente que a Igreja a ensine em seu Magistério ordinário, exercido através dos Pastores dos fiéis, os Bispos, cujo ensinamento unânime por todo o orbe católico, seja comunicado expressamente através de cartas pastorais, catecismos emitidos pela autoridade episcopal, sínodos provinciais, seja implicitamente através de orações e práticas religiosas permitidas ou encorajadas, ou através do ensinamento de teólogos aprovados, é não menos infalível do que uma definição solene promulgada por um Papa ou um Concílio geral.”
Então, agora que sabemos que ele é infalível, vejamos mais de perto o que é esse Magistério ordinário. Alguma confusão foi causada, entre os católicos que estão se esforçando para entender de vez esses conceitos, pelo fato de que, como eles sabem, todas as encíclicas papais, todas as cartas pastorais de um bispo, todos os catecismos aprovados, todas as orações do Missal ou Breviário e todas as leis no Código de Direito Canônico da Igreja refletem essa autoridade magisterial ordinária da Igreja. Mas obviamente não são todos infalíveis em si mesmos como o são os pronunciamentos ex cathedra.
Não há nenhum mistério aqui. Façamos uma comparação. Os germes podem causar doença, mas são necessários muitos germes, todos agindo no mesmo lugar ao mesmo tempo, para a doença aparecer. Os atos individuais do Magistério ordinário não são positivamente infalíveis como é uma definição doutrinal. Mas, pelo peso e número deles, eles entram em coalizão e convergem na infalibilidade. Uma afirmação isolada numa encíclica papal não equivale, normalmente, a uma definição doutrinal. Uma doutrina ensinada nas cartas pastorais de um punhado de bispos não equivale a um concílio geral. Mas, quando as afirmações dos Papas e/ou bispos e outras fontes que representam a Igreja são tão numerosas e concordes, que os fiéis inevitavelmente consideram esse ensinamento como sendo o da própria Igreja, aí então temos um ensinamento que, verdadeiramente, tem a mesma autoridade e comanda o mesmo assentimento que se ele tivesse sido ensinado por meio de uma definição solene.
Quando digo que os fiéis consideram esse ensinamento como sendo o da própria Igreja, quero dizer a grande massa dos fiéis ao redor do mundo: é por isso que a palavra “universal” é usada. É o Magistério ordinário e universal que é infalível. Ele não é algo de diferente do Magistério ordinário, ele é o Magistério ordinário quando o seu ensinamento sobre um dado ponto tornou-se universal.
Certo, fiz uma alegação forte aqui; chegou a hora de ver se consigo justificar o que estou dizendo, pela voz da autoridade católica.
Há uma porção de livros que cobrem os diferentes modos em que a Igreja ensina os fiéis e os diferentes modos em que o ensinamento dela vincula os fiéis, mas o guia principal que quero utilizar neste tópico é um de que pouquíssimos de vocês já terão ouvido falar… e, no entanto, tem ele a mais elevada autoridade. Chama-se De Valore Notarum Theologicarum – Sobre o Significado das Qualificações Teológicas, de autoria do Pe. Sixtus Cartechini. A importância especial dessa obra é ter sido escrita para uso das Congregações Romanas na avaliação da ortodoxia ou heterodoxia das diversas doutrinas. Foi publicada na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, em 1951. É baseada nas doutrinas padrão dos grandes teólogos e dos próprios Papas sobre esses tópicos e tornou-se imediatamente obra clássica, permanecendo assim até que João XXIII decidiu que a era da condenação das falsas doutrinas chegava ao fim.
Dependerei muito pesadamente do Pe. Cartechini, porque o que ele diz é o ensinamento padrão. Quem quer que duvide do que ele diz pode verificar em incontáveis outras fontes.
Os três primeiros capítulos da obra do Pe. Cartechini são sobre dogmas definidos, Magistério extraordinário. O Capítulo 4 chama-se O que é o Magistério ordinário e como os dogmas podem ser provados a partir dele, ou: acerca da fé divina e católica fundada no Magistério ordinário. O título já é eloquente: ele nos informa que os dogmas, exigindo o máximo assentimento de fé, podem ser provados a partir do Magistério ordinário, assim como do extraordinário.
O Pe. Cartechini explica que há três modos diversos em que o Magistério ordinário pode comunicar aos católicos o que eles devem crer como de fé.
Primeiro, diz ele, o Magistério ordinário é exercido através de sua doutrina expressa, comunicada pelo Papa ou pelos bispos aos fiéis no mundo inteiro sem o uso de definições formais. E ele dá uma lista de doutrinas que dizem respeito à fé e à moral ensinadas infalivelmente pelo Magistério ordinário como divinamente reveladas. Muitas delas são simplesmente propostas em encíclicas papais.
Em segundo lugar, diz ele, o Magistério ordinário é exercido pelo ensinamento implícito contido na prática ou vida da Igreja. Cartechini realça que a Igreja segue aqui o próprio Cristo, que também ensinou certos pontos pelos Seus atos, por exemplo o dever de honrar Sua Mãe, Maria Santíssima. E, sob este tópico, ele faz referência, particularmente, ao colossal peso doutrinal da liturgia. “A liturgia não cria dogmas, mas ela exprime dogmas, porque, no modo como ela louva ou reza a Deus, a Igreja exprime o que ela crê, como ela o crê, e segundo quais conceitos Deus quer ser adorado publicamente. …[então] a Igreja não pode permitir que, na liturgia, sejam ditas coisas em nome dela que sejam contrárias àquilo que ela defende ou crê.” (p. 37).
Cartechini também menciona as leis da Igreja como fonte de ensinamento infalível do Magistério ordinário e universal por meio da prática e vida da Igreja: “…nem os concílios gerais nem o Papa podem estabelecer leis que contêm pecado…e nada pode estar contido no Código de Direito Canônico que seja de qualquer modo oposto às regras da fé ou à santidade do Evangelho.”
Finalmente, há o terceiro meio em que a Igreja exerce o seu Magistério ordinário infalível: pela aprovação tácita que a Igreja outorga ao ensinamento dos Padres, dos doutores e dos teólogos. Se uma doutrina é difundida pela Igreja toda, sem objeção, isso significa que a Igreja aprova tacitamente essa doutrina. Do contrário, a Igreja inteira poderia e inevitavelmente iria errar na fé.
Se vocês estão acostumados com a noção de que o ensinamento da Igreja só tem plena certeza e obrigatoriedade quando ele toma a forma de definições ex cathedra, vocês terão percebido a esta altura que vocês foram enganados. Penso que eu já disse o suficiente para mostrar que estamos numa pista certa. Deus deu à Sua Igreja garantias maiores do que muitos católicos se deram conta. Mas a extensão da fraude teológica de que alguns de vocês podem ter sido vítimas não pára aqui.
Até agora, falamos do ensinamento estritamente infalível da Igreja, a nós comunicado ou pelo Magistério extraordinário ou pelo Magistério ordinário e universal. Mas há também o ensinamento da Igreja que não chega à infalibilidade estrita, e no entanto é estritamente e gravemente obrigatório para todos os católicos.
Aqui estamos considerando, por exemplo, o grosso dos conteúdos doutrinais das encíclicas e dos decretos das Congregações Romanas.
A respeito das encíclicas, o Papa Pio XII escreveu o seguinte, na Humani Generis:
“Nem se deve pensar que aquilo que é apresentado nas cartas encíclicas não exige por si só o assentimento, sob alegação de que ao escrever tais encíclicas os Pontífices não exercem a suprema autoridade do seu Magistério. Pois essas matérias são ensinadas pelo Magistério ordinário, acerca do qual as palavras ‘Quem vos ouve a Mim ouve’ (Lc 10,16) também se aplicam… A maior parte do que é apresentado e proposto nas encíclicas já pertence à doutrina católica por outras razões. Mas se os Sumos Pontífices chegam a pronunciar sentença expressa, nos seus documentos oficiais, sobre questão até então controvertida, é evidente para todos que segundo a intenção e vontade dos mesmos Pontífices essa questão já não pode ser tida como objeto de livre disputa entre os teólogos.” (Dz 2.313).
Isso é bastante claro. O ensinamento das encíclicas é obrigatório, ainda que ele antes não pertencesse ao corpo do ensinamento da Igreja. E o dever de crer nele não deriva do dever da fé. Vem do dever da obediência, assim como o dever da criança de crer nos seus pais.
Eis, por exemplo, o cônego George Smith novamente, escrevendo na década de 1940, num artigo na Clergy Review [Revista do Clero] que trata expressamente do que os católicos têm de crer:
“…que grande parte do ensinamento autoritativo da Igreja, seja na forma de encíclicas, decisões, condenações papais, respostas das Congregações Romanas – tais como o Santo Ofício – ou da Comissão Bíblica, não seja um exercício do Magistério infalível. E aqui, novamente, o nosso fiel precavido eleva a sua voz: ‘Tenho o dever de crer nisso?’ A resposta está implícita nos princípios já demonstrados. Vimos que a fonte da obrigação de crer não é a infalibilidade da Igreja, mas a comissão divina que ela tem de ensinar. Portanto, seja o ensinamento dela garantido pela infalibilidade ou não, a Igreja é sempre a mestra e guardiã divinamente designada da verdade revelada, e, consequentemente, a suprema autoridade da Igreja, mesmo quando não intervém para tomar uma decisão infalível e definitiva em questões de fé ou moral, tem o direito, em virtude da comissão divina, de comandar o assentimento obediente dos fiéis. Na ausência da infalibilidade, o assentimento assim exigido não pode ser o de fé, seja católica ou eclesiástica; será um assentimento de ordem inferior, proporcionado ao seu fundamento ou motivo. Mas, seja qual for o nome que se lhe dê, – por ora, podemos chamá-lo de crença –, ele é obrigatório; obrigatório não porque o ensinamento é infalível – ele não é – mas porque é o ensinamento da Igreja designada por Deus. É dever da Igreja, como Franzelin mostrou, não somente ensinar a doutrina revelada mas também protegê-la, e por isso a Santa Sé ‘pode prescrever para serem seguidas ou proscrever para serem evitadas opiniões teológicas ou opiniões conectadas com a teologia, não somente com a intenção de infalivelmente decidir a verdade por um pronunciamento definitivo, mas também – sem qualquer intenção dessas – meramente para o propósito de salvaguardar a segurança da doutrina católica.’ Se é dever da Igreja, ainda que não infalivelmente, ‘prescrever ou proscrever’ doutrinas para essa finalidade, então é evidentemente também o dever dos fiéis aceitá-las ou rejeitá-las, por conseguinte.
Nem tampouco essa obrigação de submissão às declarações não-infalíveis da autoridade é satisfeita pelo chamado silentium obsequiosum. A segurança da doutrina católica, que é o propósito dessas decisões, não seria salvaguardada se os fiéis fossem livres para negar o assentimento deles. Não é suficiente que eles escutem em silêncio respeitoso, evitando oposição aberta. Eles são obrigados em consciência a submeter-se a elas (Carta de Pio IX ao Arcebispo de Munique, 1861; cf. Denzinger, 1684), e a submissão de consciência a um decreto doutrinal não significa apenas abster-se de rejeitá-lo publicamente; significa a submissão do juízo particular ao juízo mais competente da autoridade.
Mas, como já notamos, ad impossibile nemo tenetur, e, sem um motivo intelectual de alguma espécie, nenhum assentimento intelectual, embora obrigatório, é possível. Sobre que fundamento intelectual, portanto, os fiéis baseiam o assentimento que eles são obrigados a prestar a essas decisões não-infalíveis da autoridade? Naquilo que o Cardeal Franzelin (De Divina Scriptura et Traditione, 1870, p.116), com expressão um tanto extensa mas exata, descreve como auctoritas universalis providentiae ecclesiasticae. Os fiéis consideram com razão que mesmo onde não haja o exercício do Magistério infalível, a divina Providência tem um cuidado especial pela Igreja de Cristo; que, portanto, o Sumo Pontífice, em vista do seu ofício sagrado, é dotado por Deus com as graças necessárias para o cumprimento apropriado deste; que, portanto, as suas declarações doutrinais, ainda quando não garantidas pela infalibilidade, possuem a mais alta competência; que, num grau proporcionado, isso é verdadeiro também das Congregações Romanas e da Comissão Bíblica, compostas por homens de grande saber e experiência, que estão plenamente atentos às necessidades e tendências doutrinais dos nossos dias e que, em vista do cuidado e da (proverbial) cautela com que executam os deveres que lhes são confiados pelo Sumo Pontífice, inspiram plena confiança na sabedoria e prudência de suas decisões. Baseado como está nessas considerações de ordem religiosa, o assentimento em questão é chamado de ‘assentimento religioso’.”
[Possibilidade de erro. O erro não teria como ser uma heresia. A teoria de que uma encíclica teria a possibilidade de conter uma afirmação inexata – por não ser infalível em si mesma sob todos os aspectos – é defendida por alguns poucos, mas está longe de sugerir que uma encíclica possa ensinar doutrina previamente condenada, possa desencaminhar as almas. E está longe de sugerir que tal doutrina errônea em encíclicas possa tornar-se tão habitual que, longe de se submeterem às doutrinas das encíclicas, os católicos tenham de lê-las com os seus manuais de teologia abertos no colo, para ver se, por algum golpe de sorte, o ensinamento delas pode vir a ser ortodoxo…]
Citei Smith para facilitar, já que ele escreveu em inglês. Se vocês leem latim, remeto-os particularmente sobre este tópico a Cartechini e ao De Divina Scriptura et Traditione do Cardeal Franzelin, que é considerado a análise teológica mais detalhada e respeitada sobre o tema.
E, de fato, a obrigação de assentimento aos decretos mesmo das Congregações Romanas já foi inculcada com frequência pelos Papas. Por exemplo, sob o Papa São Pio X foi decidido que falhar em submeter-se ao ensinamento da Comissão Bíblica envolvia grave culpa de desobediência em respeito à sua autoridade e de temeridade em respeito à sã doutrina (Dz 2.113). Cartechini conta-nos que os decretos doutrinais das Congregações Romanas, quando promulgados por encargo especial do Papa, constituem preceito doutrinal vinculante (p. 117), mas que até mesmo quando não são especificamente promulgados em nome do Papa, mas apenas sob a autoridade geral já delegada às Congregações, eles ainda assim exigem obediência sob pena de pecado grave (p. 118). E o Papa Pio IX decretou na Tuas Libenter (1863, ao arcebispo de Munique) que não era de modo algum suficiente para os escritores e estudiosos católicos aceitar os dogmas da Igreja, “mas eles devem também submeter-se às decisões – ele disse – relativas à doutrina que são propostas pelas Congregações Pontifícias, bem como àqueles pontos de doutrina que, pelo comum e constante sentir dos católicos, são considerados verdades teológicas tão certas que, ainda que as opiniões contrárias a esses pontos de doutrina não possam ser chamadas de heréticas, elas merecem, sem embargo, alguma outra censura teológica.” (Dz 1.684).
* * *
Então, vamos recapitular um pouco. Mostrei que a verdadeira infalibilidade doutrinal estende-se muito além dos limites das definições solenes. Espero ter traçado, em linhas gerais, os modos em que o Magistério Ordinário pode ensinar infalivelmente, tais como através de leis, da liturgia e do ensinamento comum dos teólogos. Mostrei também que o nosso dever de submissão ao ensinamento das autoridades da Igreja estende-se ainda além da infalibilidade do Magistério Ordinário.
Espero, sobretudo, ter re-inspirado em vocês uma atitude que está muito em falta em nossos dias. Chama-se confiança na Igreja. Penso que eu já disse o bastante para mostrar que nossa Mãe, a Santa Igreja Católica, é verdadeiramente “a coluna e o firmamento da verdade” e, verdadeiramente, como o profeta Isaías previu, “35:8. Haverá ali uma vereda e um caminho, que se chamará o caminho santo; não passará por ele o impuro, e este será para vós um caminho direito, de sorte que andem por ele os próprios insensatos sem se perderem.”
Tenho bem a peito disseminar confiança na Igreja. Nós, mortais, somos tão faltos de confiança onde ela é merecida… e tão dispostos a confiar em nós mesmos, onde nossa confiança é raramente merecida. Agimos como se Cristo nunca tivesse feito Suas promessas. A nossa vida espiritual não faz progressos, porque nós não confiamos em Deus o bastante. E a nossa catolicidade é fraca e murcha, deixando-nos vulneráveis à confusão na crise, à transigência e à distorção da sã doutrina, porque nós não confiamos na Igreja de Deus como Deus quer que ela seja objeto de confiança.
Eis Dom Guéranger:
“O que torna sempre mais firme e mais serena a reflexão do historiador cristão é a certeza que lhe dá a Igreja, que marcha diante dele como uma coluna luminosa e alumia divinamente todos os seus juízos. Ele sabe que vínculo estreito une a Igreja ao Deus-Homem, como ela é assegurada por Sua promessa contra todo erro no ensinamento e na direção geral da sociedade cristã, como o Espírito Santo a anima e conduz; é, pois, nela que ele buscará o critério dos seus juízos. …ele sabe onde se manifesta a direção, o espírito da Igreja, seu instinto divino. Recebe-os, aceita-os, confessa-os corajosamente; aplica-os… Igualmente, nunca trai, nunca sacrifica; diz que é bom o que a Igreja julga bom, mau o que a Igreja julga mau. Que lhe importam os sarcasmos, as chacotas dos covardes medíocres? Ele sabe que está com a verdade, porque ele está com a Igreja e a Igreja está com Cristo.”
(Guéranger, Le Sens Chrétien de l’Histoire [O Sentido Cristão da História], Paris, 1945, p. 21-22).
[N. do T. – Trad. br., com leves retoques de detalhe, extraída de: “santamariadasvitorias.org/o-sentido-cristao-da-historia/”.]
Mas, é claro, vocês não podem adotar essa atitude com a Igreja Conciliar, podem? Se vocês conhecem e creem na imutável Fé Católica, é-lhes impossível crer em tudo o que a religião conciliar ensina nos decretos do Vaticano II, nas suas encíclicas, no ensinamento comum dos seus bispos, nos seus textos litúrgicos oficialmente aprovados e usados, nas suas leis e normas disciplinares. Muito menos podem vocês ter a atitude de Dom Guéranger para com a Igreja que emergiu do Vaticano II, segurando a mão dela como uma criança, atendo-se a cada palavra dela, amando-a, admirando-a, sedentos de aprender dela a todo o tempo: confiando nela.
Eu digo que não podem. E chegou a hora de ilustrar e provar essa alegação. Passei um bom tempo tratando da base doutrinal, para me certificar de que temos os nossos critérios de julgamento acertados. Espero ser agora mais sucinto.
Tenho de mostrar que a Igreja que emergiu do Vaticano II claramente não goza das garantias divinas concernentes ao seu Magistério ordinário e atos associados, garantias estas que a Igreja Católica necessariamente e inalienavelmente possui. Poderíamos passar anos debruçando-nos sobre os exemplos disponíveis… Escolherei apenas alguns, mas suficientes.
Como o meu primeiro exemplo, escolho a liturgia da Igreja Conciliar. Escolho a liturgia primeiro, porque ela é crucial. Na Quas Primas, o Papa Pio XI fez uma declaração notabilíssima. Ele disse que “as pessoas são instruídas nas verdades da fé…com muito maior eficácia pela celebração anual dos nossos sagrados mistérios do que por qualquer pronunciamento autorizado do Magistério da Igreja.” Noutras palavras, quando se trata de comunicar a fé aos fiéis, no nível prático, a liturgia é mais importante e influente do que qualquer outro meio em que a Igreja comunica a mente dela. E sabemos que isso é verdade por experiência. Vocês só precisam pensar: não foi o próprio Vaticano II que solapou a fé da maior parte do laicato, pois estes nunca leram o Vaticano II. Foi a Missa Nova o que realmente os arruinou, não foi?
Mencionamos a liturgia como garantida pelo Magistério ordinário infalível.
Cartechini disse: “a Igreja não pode permitir que, na liturgia, sejam ditas coisas em nome dela que sejam contrárias àquilo que ela defende ou crê.” (p. 37).
O Papa Pio VI condenou o sínodo jansenista de Pistoia por este insinuar que a “ordem litúrgica vigente, recebida e aprovada pela Igreja, pudesse resultar em qualquer parte do esquecimento dos princípios que devem guiá-la”; ele ensinou que essa ideia era impossível porque “a Igreja, guiada pelo Espírito de Deus, não pode estabelecer uma disciplina…que é perigosa ou nociva” (Dz 1.533 e 1.578).
Vocês veem de imediato que essas citações – e há muitas outras disponíveis – excluem de imediato as rotas de fuga usuais. Vocês não podem escapar dizendo que a Missa Nova não é totalmente obrigatória ou não se aplica à Igreja inteira. Se a Igreja Conciliar é a Igreja Católica, então a Missa Nova é indubitavelmente a mais vasta parte da “ordem litúrgica vigente, recebida e aprovada pela Igreja” e, portanto, impedida pela proteção do Espírito Santo de ser não-ortodoxa ou nociva. Estritamente falando, vocês não podem adotar a popular evasiva de Michael Davies e dos indúlteros, insistindo que é só o latim que conta. Pois as autoridades da Igreja Conciliar conscientemente aprovaram os erros de tradução vernaculares – sendo o mais notável o erro de tradução encontrado em todas as línguas do mundo pelo qual as palavras “será derramado por vós e por muitos” na consagração do cálice são vertidas: “por vós e por todos”. Essa herética tradução deturpada é agora parte da ordem litúrgica vigente, recebida e aprovada pela Igreja, não é mesmo? A única questão é… por qual Igreja?
Mas suponha-se que consideremos, mesmo assim, os textos em latim. Darei um só exemplo simples. Ele ocorre na oração da Sexta-feira Santa pelos judeus, quando os ministros do Novus Ordo rezam não pela conversão dos judeus, mas, ao invés disso, para que eles possam continuar ou progredir na fidelidade à aliança de Deus, “in sui fœderis fidelitate proficere”. Isso só pode querer dizer que os judeus são, presentemente, fiéis à aliança de Deus. Mas é claro que eles abandonaram completamente a Antiga Aliança ao recusarem aceitar o Messias, ao gritarem: “Não temos rei senão César… Não queremos que este homem reine sobre nós.” [Jo 19,15 e Lc 19,14 (N. do T.)] E, como resultado imediato disso, a Antiga Aliança foi abrogada e substituída pela nova e perpétua Aliança entre Deus e a Sua Igreja, com a qual os pérfidos judeus não têm absolutamente nenhuma conexão. Eis aí heresia clara ensinada na Liturgia Conciliar, e de fato uma verdadeira promoção do judaísmo.
Além disso, noto rapidamente os seguintes pontos sobre a Liturgia Conciliar, todos eles ofensivos à doutrina católica e nocivos às almas:
— A fórmula da consagração traduzida altera substancialmente as palavras de Cristo e é inválida de acordo com Santo Tomás, as rubricas, o Concílio de Florença (Dz 715) e os Padres.
— Ausência de verdadeiro ofertório – essencial –, substituído por ação de graças judaica antes das refeições.
— Consagração que é mandada ler como narrativa e não in persona Christi.
— A aprovação dada, no mínimo, à “Missa” voltada para o povo, à comunhão na mão, aos ministros extraordinários, à supressão de tudo o que inspira a reverência: alterações calculadas para destruir a fé na presença real, na natureza sacrifical da Missa, na necessidade de um sacerdócio sacrificial ordenado.
— A total ausência, do novo rito e do novo catecismo, da palavra ou da doutrina de que a Missa é propiciatória.
— Chamo a atenção também para o livreto muito lúcido e valioso do Pe. Cekada chamado The Problems with the Prayers of the Modern Mass [Os problemas com as orações da missa moderna]. É uma análise dos Próprios da Missa Nova e de como eles foram criados a partir dos Próprios tradicionais. Ele prova à saciedade, para além de todo debate e até de todo resmungo, que os novos Próprios foram fixados com base no princípio, seguido à risca, de suprimir ou substituir toda menção a milagres, ira divina, perigo de perder a alma, tentações, concupiscência, culpa, desapego do mundo, existência de inimigos da Santa Igreja ou de nossas almas e muito mais. Tudo liquidado.
Recordo-lhes que a Igreja não pode conduzir as almas ao erro ou ao perigo por meio da liturgia aprovada. Eis como Santo Agostinho o coloca: “A Igreja de Deus, cercada por tanta palha e cizânia, tolera muitas coisas, mas ela não aprova nem faz o que é contrário à fé ou à virtude e ela não fica calada perante essas coisas.” [Epístola 55; no original, citado noutra parte pelo autor: “Sed Ecclesia Dei inter multam paleam multaque zizania constituta, multa tolerat, et tamen quæ sunt contra fidem vel bonam vitam non approbat, nec tacet, nec facit.” (N. do T.)]
A indefensável “missa” nova, tão insultante da honra divina, tão nociva às almas e tão corrosiva da sã doutrina, é, portanto, o meu primeiro exemplo claro de que a Igreja Conciliar não pode ser a Igreja Católica.
Em segundo lugar, há as leis da Igreja. Lembram-se de Cartechini resumindo o ensinamento unânime dos teólogos? “Nem os concílios gerais nem o Papa podem estabelecer leis que contêm pecado…Nada pode estar contido no Código de Direito Canônico que seja de qualquer modo oposto às regras da fé ou à santidade do Evangelho.”
Ora, se consultamos as leis da Igreja Conciliar, encontramos muitas que contêm pecado, são opostas de muitos modos às regras da fé e que francamente espezinham o próprio conceito de santidade do Evangelho.
Eis alguns exemplos que me ocorrem:
1. A autorização a administrar os sacramentos a não católicos. No Antigo Código, cânon 731: “É proibido administrar os sacramentos da Igreja a hereges ou cismáticos, mesmo que eles errem de boa fé e os peçam, a não ser que eles tenham antes rejeitado os seus erros e se reconciliado com a Igreja.” No Novo Código, cânon 844/3+4, é agora permitido a todos os hereges e cismáticos orientais e muitos outros acatólicos também.
2. A autorização a assistir ativamente ao culto público em comum com acatólicos e a participar ativamente nos ritos deles. Código antigo, cânon 1.258… nem vou me incomodar de ler: está no catecismo. Agora temos o V2 com o seu decreto Unitatis Redintegratio que diz que atualmente pode ser boa ideia violar o Primeiro Mandamento desse jeito, 844\2 etc.
Por dois mil anos, a Igreja ensinou enfaticamente que esses dois atos são ambos mortalmente pecaminosos. E, em ambos os casos, a doutrina dela é o mais evangelicamente santa que se pode desejar: Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis aos porcos as vossas pérolas, se eles não ouvirem a Igreja, considerai-os como pagãos e publicanos. [Mt 6,6 e 18,17 (N. do T.)]
3. A definição do matrimônio no cânon 1.055, que segue o decreto do V2 sobre a Igreja no Mundo Moderno, ao equacionar os vários fins do casamento, entra em conflito com o ensinamento tradicional da Igreja, resumido no Código de 1917, que dizia, sucintamente, que “a finalidade primeira do matrimônio é a procriação e educação da prole” (cânon 1.013). Na realidade, o novo Código chega a listar o bem dos esposos antes da finalidade primeira e só menciona a procriação de crianças em seguida. Esse é o erro que foi veementemente combatido no V2 pelo Cardeal Ottaviani e pelo Cardeal Browne, o Superior Geral dos Dominicanos.
4. A supressão, do novo Código, da lei divina promulgada por São Paulo conforme a qual as mulheres devem ter a cabeça coberta, e os homens, a cabeça descoberta na igreja. Ou será que São Paulo precisava de aulas, sobre a santidade conforme o Evangelho, dos redatores do Código de Direito Canônico de 1983?
Vemos então que a Igreja Conciliar por suas leis autoriza e encoraja pecado letal e a heresia de que a verdadeira Igreja é alguma coisa outra, e mais ampla, que a Igreja Católica. A Igreja Católica não tem como fazer isso.
Agora vejamos o próprio Vaticano II. Os tradicionalistas enfatizaram que ele não deu a entender que exercia o Magistério extraordinário e concluíram que é, portanto, aceitável supor que ele errou. Um momento. Quando os decretos de um concílio geral não estão fazendo definições dogmáticas solenes, eles permanecem um dos mais altos exercícios do Magistério ordinário e universal. Dizer que não precisamos automaticamente aceitar por fé divina tudo o que eles dizem não é o mesmo que sugerir que eles podem ensinar erros contra a doutrina católica que já foram condenados infalivelmente. No mínimo dos mínimos, o ensinamento de um tal concílio é infalivelmente seguro e obrigatório em consciência.
Só que, nos textos do Vaticano II, encontramos numerosas heresias e outras doutrinas falsas.
Não tenho tempo de listar muitas [N. do T. – Cf., do A., sua refutação a 17 erros e heresias do Vaticano II, neste mesmo blogue], mas é preciso mencionar a liberdade religiosa, para a qual uma declaração inteira foi devotada e que contradiz praticamente palavra por palavra o ensinamento da Quanta Cura do Papa Pio IX, que é comumente considerado exemplo clássico de definição solene pelo Magistério extraordinário infalível.
Não posso mencionar esse tópico sem alguma alusão aos esforços engenhosos do Dr. Brian Harrison em mostrar que a doutrina do V2 é, na realidade, compatível com o ensinamento infalível que ela aparenta contradizer. Eu ressaltaria que, até onde eu sei, o Fr. Harrison é o primeiro homem na história do Cristianismo que julgou necessário escrever um longuíssimo livro acadêmico alegando demonstrar que, apesar das reconhecidas aparências, o ensinamento de um dado concílio geral pode de fato – com enorme esforço – ser interpretado de um jeito que talvez seja mais ou menos compatível com a doutrina católica!
Seria rude não admirar os esforços do Dr. Harrison. A mim, sabem a verdadeiro heroísmo. E partem do sólido princípio de que – Harrison sabe tão bem quanto eu – sem uma tal reconciliação, a Igreja Conciliar desmorona no chão em detrito e ruína.
Mas era uma tarefa desenganada já desde o início. Que uma obra dessa pudesse ter sido considerada necessária já era prova de que o Vaticano II não foi realmente um concílio geral da Igreja Católica. Harrison estica os antigos ensinamentos pré-Vaticano II o máximo que ele consegue numa direção liberal e estica a doutrina do Vaticano II o máximo que ele consegue na direção do Catolicismo, e se convence de que fez as duas pontas se encontrarem. Não fez.
Ele não fez, porque, em ambos os casos, a interpretação dele é peculiar a ele próprio. E, em ambos os casos, todo o mundo exceto ele entendeu e supôs o oposto. Até o Vaticano II, por exemplo, os Papas insistiram enfaticamente no dever das nações de professar a Fé verdadeira e repreenderam asperamente qualquer nação outrora católica que malograsse em o fazer. Desde o Vaticano II, porém, os novos “papas” insistiram, pelo mundo inteiro, que toda nação outrora católica deveria remover de sua constituição todo sinal de posição privilegiada para a Fé verdadeira. E eles despiram a liturgia da Igreja de toda alusão (e havia muitas) ao dogma de que Cristo deve reinar não somente sobre as almas dos indivíduos mas também sobre os estados e instituições. Devemos crer realmente que tudo isso dizia respeito somente a uma questão de conveniência política? No que as circunstâncias políticas em todas as nações mudaram tão radicalmente entre 1958 e 1963 que aquilo que era antes grave dever tornou-se, da noite para o dia, grave pecado?
Devemos realmente crer que Pio IX enganou-se sobre o verdadeiro significado e aplicação da Quanta Cura e precisava que o Dr. Harrison lha explicasse? E que João Paulo II enganou-se sobre o verdadeiro significado do Vaticano II e precisava de Harrison para lho explicar? E, se João Paulo II aceita a versão Harrison da liberdade religiosa ao invés das heresias de John Courtney Murray, quando ele vai mostrar algum sinal disso?
Outro erro flagrante na lei da Igreja Conciliar encontra-se no seu regime de declarações de nulidade. Os EUA são, é claro, a capital mundial da declaração de nulidade. Mais da metade dos casamentos católicos acabam sendo decretados pela Igreja Conciliar como nunca tendo existido, como tendo sido inválidos e nulos desde o início. Noutras palavras, o casal não se casou. Estavam vivendo em fornicação. Seus filhos são bastardos. Ora, ou a Igreja Conciliar está cooperando, em grande escala, com adultério ao anular casamentos sem razão suficiente, destroçando aquilo que Deus uniu; ou então a Igreja Conciliar não sabe como casar as pessoas validamente para começar e está cooperando com fornicação em grande escala ao dizer às pessoas que estão casadas quando não estão. De um jeito ou de outro, a mensagem é alta e clara. Os que aprendem com as leis e prática da Igreja Conciliar estão concluindo que o casamento sacramental não é um estado permanente que dura até a morte. Isso é uma heresia.
Um exemplo final. Nós aprendemos que a Igreja ensina, através do seu Magistério ordinário infalível, não somente pelo que ela diz, como pelo que ela não diz. Quem cala, consente; certamente quando a Igreja, durante 40 anos, falha em protestar contra um erro ou um mal notórios e amplamente difundidos, mesmo universais. Ora, dentre muitas outras, considere-se apenas a verdade, um tanto importante, da condenação eterna. Por um único pecado mortal, nós perdemos a vida divina e somos necessariamente destinados ao Inferno, a não ser que nos arrependamos. Nosso Senhor Jesus Cristo ensinou essa verdade umas quarenta vezes nos Evangelhos. Não há quase nada de mais central no Catolicismo. Depois de dar glória a Deus, a principal tarefa da Igreja é salvar almas. Salvá-las do quê? Sem o perigo do fogo do Inferno, a Redenção não tem sentido: o Cristianismo torna-se irrelevante.
Agora considerem o silêncio ensurdecedor da Igreja Conciliar acerca do Inferno. Considerem o silêncio dela sobre o pecado mortal. Perguntem a um padre conciliar quando foi a última vez que ele pregou sobre o Inferno. Perguntem a João Paulo II por que ele devota as encíclicas dele a centenas de textos visando criar a noção de que a Encarnação cria um vínculo permanente e indissolúvel entre Cristo e todos os homens, convidando à noção da salvação universal, e nunca alerta o seu rebanho para o perigo da condenação. O fato é claro. Pelo seu silêncio, a Igreja Conciliar nega o Inferno, ao menos como um perigo real que ameaça os seus membros.
Reverendos Padres, Senhoras e Senhores, se me acompanharam até aqui, terão visto que a Igreja Conciliar ensina doutrina falsa para os seus fiéis de maneiras que a Igreja Católica tem a garantia divina de nunca fazer. A Igreja Conciliar não é, portanto, a Igreja Católica. Recordem, por favor, que esse argumento não depende, de maneira nenhuma, da questão da pertinácia: a questão de se, individualmente, aqueles que ensinam os erros percebem ou não que os seus erros são contrários à doutrina católica. Cristo prometeu proteger a Sua Igreja de modo a impedi-la de conduzir os fiéis para o erro ou o perigo para as suas almas, seja deliberadamente ou por acidente. Semelhantemente, a minha demonstração não depende, de maneira nenhuma, das distinções sutis que por vezes se aplicam acerca da qualificação teológica exata de uma determinada doutrina. Algo do que a Igreja ensina infalivelmente deve ser crido com fé eclesiástica, não com fé divina. Negá-lo é pecado grave que acarreta excomunhão, mas provavelmente não é estritamente heresia. Esse tipo de distinção não tem lugar aqui. A Igreja mesma não pode ensinar às almas qualquer erro que seja oposto de qualquer modo ao ensinamento que ela já lhas deu; independentemente da exata qualificação teológica que pertence à doutrina em pauta. A Igreja é “a coluna e o firmamento da verdade”. (1 Tim 3,15; nota de rodapé da Douay-Rheims [a tradução consagrada da Vulgata para o inglês (N. do T.)]: “3:15. Porém, se eu tardar, para que saibas como deves portar-te na casa de Deus, que é a Igreja de Deus vivo, coluna e firmamento da verdade. A coluna e o firmamento da verdade…. Portanto, a Igreja do Deus vivo nunca pode defender o erro, nem introduzir corrupções, superstição, ou idolatria.”)
A razão pela qual a Igreja Conciliar não é a Igreja Católica é bastante simples. Se alguém professa heresia publicamente, deixa por esse próprio fato de ser católico. JP2 e os bispos dele fizeram isso. Vocês ouvirão mais sobre isso do Sr. Lane.
Eu gostaria de concluir voltando às disposições que os bons católicos são obrigados a ter com respeito à Igreja. Quero citar algumas palavras do imortal Pe. Faber, em seu livro The Precious Blood [O Precioso Sangue]:
Devemos ser leais à Igreja até em nossos mínimos pensamentos sobre ela.
Devemos amar os seus caminhos, além de obedecer aos seus preceitos e crer nas suas doutrinas.
Devemos estimar tudo o que a Igreja abençoa, tudo o que a Igreja afeta.
A nossa deve ser sempre uma atitude de submissão, não de crítica. Quem está desapontado com a Igreja, deve estar perdendo a fé, ainda que não o saiba.
O amor de um homem pela Igreja é o teste mais seguro do seu amor por Deus. Ele sabe que a Igreja toda é informada com o Espírito Santo. A vida divina do Paráclito, Seus conselhos, Suas inspirações, Suas operações, Suas conaturalidades, Sua atração, estão nela por toda parte.
O dom da infalibilidade é somente uma concentração, o ponto culminante, a exteriorização solene e oficial, da inabitação do Espírito Santo na Igreja. Ao passo que ele pede, como a Revelação, absoluta submissão de coração e alma, todos os arranjos, maneiras e disposições menores da Igreja pedem submissão, docilidade e reverência globais, em razão de a Igreja toda ser um templo preenchido com a vida do Espírito Santo.
—Pe. F. W. Faber Cong. Orat. D.D., op. cit., Burns and Oates, 4.ª ed. pp. 187-9.
Eu afirmo que nenhum católico tradicional pode adotar essa visão com relação a João Paulo II e a religião que ele encabeça. A razão está num fato exposto por um cardeal estrangeiro que esteve nos EUA para o 41.º Congresso Eucarístico, realizado em 1969 na Filadélfia. Ele disse: “Estamos agora em face do maior confronto histórico pelo qual a humanidade já passou… Estamos agora encarando o confronto final entre a Igreja e a anti-Igreja, entre o Evangelho e o anti-Evangelho. Este confronto está dentro dos planos da divina Providência.”
O nome dele era Karol Cardeal Wojtyla, arcebispo de Cracóvia. É bom descobrir que concordamos em algo.
Assim concluo minha exposição.
“Quando alguém ama o Papa, não pára para debater sobre o que ele aconselha ou exige, para perguntar até onde vai o estrito dever de obediência e para marcar o limite dessa obrigação. Quando alguém ama o Papa, não objeta que ele não falou claro o bastante, como se ele fosse obrigado a repetir no ouvido de cada indivíduo a vontade dele, tão frequentemente enunciada claramente, não só de viva voz, mas também por meio de cartas e outros documentos públicos; não põe em dúvida as ordens dele sob o pretexto – facilmente invocado por todo o mundo que não quer obedecer – de que elas não emanam diretamente dele, mas dos que o rodeiam; não limita o campo no qual ele pode e deve exercer a vontade dele; não opõe, à autoridade do Papa, a de outras pessoas, não importa o quão cultas, que diferem de opinião com o Papa. Ademais, não importa o quão vasta é a ciência deles, falta-lhes santidade, pois não pode haver santidade onde há desacordo com o Papa.”
(São Pio X, aos padres da União Apostólica, 18 de novembro de 1912, AAS 1912, p. 695).
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PARA CITAR:
J.S. DALY, A Crise Impossível, 2002, trad. br. por F. Coelho, São Paulo, dez. 2009, blogue Acies Ordinata, http://wp.me/pw2MJ-6C
de: “The Impossible Crisis”, paper lido durante a 2002 “Sede vacante” Traditional Catholic Conference, realizada no Turning Stone Resort, up-state New York, sábado, 6 de julho de 2002, e publicado como uma série, em quatro partes, no mensário The Four Marks, edições de abr. a jul. 2009.
https://magisteriodaigreja.com/a-crise-impossivel/