A reforma litúrgica

O amor à verdade é especialmente necessário a quem queira estudar problema tão grave e tão prenhe de consequências como a reforma litúrgica emanada do Vaticano II. Aí mais ainda do que alhures, cumpre excluir todo argumento aproximativo ou inspirado pela paixão, para julgar a realidade à luz da doutrina católica.

No rebentamento de novidades e de equívocos que invadiu a cristandade desde o Vaticano II, a reforma litúrgica atingiu o povo fiel em primeiro lugar e profundamente. Seu estudo se impõe, portanto, de maneira vital, mas topa com uma dificuldade proveniente da natureza e da qualificação particulares da santa liturgia: esta não é nem um enunciado dogmático nem uma lei disciplinar, é preciso julgá-la segundo seus próprios critérios, pois ela é antes de tudo a expressão da oração pública da Igreja:

“A santa liturgia é o culto público que nosso Redentor presta ao Pai como cabeça da Igreja; é também o culto prestado pela sociedade dos fiéis a Seu fundador, e por Ele ao Pai eterno: numa palavra, é o culto integral do Corpo Místico de Jesus Cristo, ou seja, da cabeça e de seus membros”. [1. Pio XII, Mediator Dei. Ens. Pont., La Liturgie, n.º 521.]

Essa reforma litúrgica pode ser estudada sob três pontos de vista complementares: pode-se considerá-la na sua gênese, será o ponto de vista histórico; pode-se compará-la aos princípios que devem governar a santa liturgia, será o ponto de vista litúrgico; pode-se julgá-la, por fim, à luz da doutrina católica, será o ponto de vista da fé. Esta última consideração é a mais importante, pois ela permite esclarecer a situação da Igreja, e só ela permite justificar – ou seja, tornar justa – a recusa, que muitos legitimamente efetuaram, da reforma. Os dois primeiros pontos de vista nos introduzirão no terceiro.

 

O ponto de vista histórico

A reforma litúrgica do Vaticano II é o resultado e a consagração de um longo trabalho de sapa e de preparação dos espíritos. [2. A face visível desse trabalho foi bem analisada pelo Pe. Didier Bonneterre: Le mouvement liturgique, edições Fideliter, 1980.] Sob o impulso de Dom Guéranger, em seguida por autoridade São Pio X, um movimento de restauração da ordem litúrgica e de revalorização dos tesouros da Igreja desenvolveu-se com fruto. Mas ele caiu em terreno minado pelo racionalismo e pelo modernismo, e desvios graves rapidamente brotaram. Mais ainda, é uma mudança radical que o fez efetuar um tenor deste movimento, Dom Beauduin:

“A ação de Dom Lambert Beauduin não teve somente como efeito dar um novo impulso ao movimento suscitado por Dom Guéranger, ela logrou também fazer a liturgia aparecer sob uma nova luz. O ponto de vista de Dom L. Beauduin não é mais, exatamente, como o de Dom Guéranger, o da oração contemplativa, de um lirismo desinteressado que canta o seu amor sem outra preocupação que o louvor; esse aspecto da liturgia, Dom L. Beauduin não o desconhece, mas ele prefere pôr o acento em seu aspecto didático; ele considera antes a liturgia na sua ação sobre as almas que no seu papel de santificação.” [3. Dom Froger. La Pensée Catholique, n.º 7 (1948) p. 61.]

Uma reviravolta se anuncia, então: Dom Beauduin considera a liturgia como dirigindo-se ao homem mais do que a Deus, e ele se orienta assim em direção à concepção protestante. [4. “Todas as cerimônias devem ter por finalidade principal ensinar ao povo aquilo que é preciso que ele saiba sobre Cristo” (Confissão de Augsburgo, manifesto do protestantismo redigido por Melanchton sob inspiração de Lutero, art. 24, ed. Fides 1979, p. 84).] Essa reviravolta acabará sendo total, e a liturgia será então harmonizada com a doutrina do primado do homem, coluna vertebral do Vaticano II. No aguardo, esse movimento litúrgico desviado vai se desenvolver por força de audácia, de dissimulação, de influência larvada, de generosidades e de devotamentos também. A reforma do Vaticano II nada mais será que o triunfo e a oficialização de tais princípios do movimento litúrgico, princípios lançados e sustentados mediante procedimentos verdadeiramente revolucionários. É, portanto, a uma revolução – tanto por seus princípios quanto por seus métodos – que o concílio dará o seu aval.

 

O ponto de vista litúrgico

A ciência litúrgica é árdua; assim, antes que tentar enunciar-lhe os princípios para a eles comparar a reforma, é preferível reportar-se àquilo que Dom Guéranger nomeou a heresia antilitúrgica. Em doze pontos, ele resume os princípios que são comuns aos hereges e a seus êmulos, quando eles põem a mão na liturgia para acomodá-la a seus erros. Dom Guéranger atribuía grande importância a esses princípios, e volta a eles seis vezes em sua obra magna, Les Institutions Liturgiques [5. Segunda edição: I, 397-407; II, 115-117, 204-205, 332-334; III, xviii-xx (prefácio); IV, 44-48.]:

1. o ódio à Tradição nas fórmulas do culto divino. Todo sectário que queira introduzir uma doutrina nova encontra-se infalivelmente em presença da liturgia, que é a Tradição em sua mais elevada potência, e ele não encontrará repouso enquanto não tiver feito calar essa voz, enquanto não tiver rasgado suas páginas que contêm a fé dos séculos passados;

2. a substituição das fórmulas compostas pela Igreja por leituras da Sagrada Escritura, que é mais fácil de fazer dizer habilmente o que se quer;

3. a fabricação e introdução de fórmulas novas, expressões do erro;

4. a contradição com seus próprios princípios;

5. a supressão de toda cerimônia e toda fórmula que exprima o mistério;

6. a extinção total desse espírito de oração que é chamado de unção;

7. a proscrição ou a diminuição do culto à Santíssima Virgem Maria e aos santos;

8. a reivindicação do uso da língua vulgar no serviço divino;

9. a libertação da fadiga e do incômodo que impõem ao corpo as práticas da liturgia, e a diminuição do total de orações públicas e particulares;

10. o ódio ao poder papal;

11. o presbiterianismo, exaltação do simples sacerdócio em detrimento da autoridade episcopal;

12. a submissão ao poder político e temporal.

Enumerados a propósito do protestantismo, esses pontos serão retomados por Dom Guéranger por ocasião do estudo do jansenismo e do galicanismo. Mas, como aqueles que professavam esses dois erros pretendiam permanecer no seio da Igreja, Dom Guéranger mostra que o fundamento e caráter comum desses pontos é a recusa da submissão à autoridade legítima da Igreja, ao Soberano Pontífice ao qual o direito da Igreja reserva a legislação litúrgica.

Os mesmos princípios, as mesmas tendências e os mesmos erros se encontram na reforma conciliar; todavia, atendo-se ao ponto de vista litúrgico, pode-se demonstrar apenas um parentesco material, apenas uma coincidência de fato, entre os desvios estudados por Dom Guéranger e a reforma que nos ocupa. Desse parentesco, não se pode concluir nada em definitivo, salvo que um estudo mais fundamental se impõe, a fim de verificar qual é a doutrina subjacente a esta reforma. Cumpre, pois, com toda a necessidade, chegar ao ponto de vista capital, que é o da fé.

 

O ponto de vista da fé

1. A relação entre a fé e a liturgia

A doutrina da Igreja está contida na carta que o Papa São Celestino I (422-432) dirigiu aos bispos da Gália. Para confundir os pelagianos hereges que negavam a necessidade da graça divina para a salvação, o Soberano Pontífice recorre à autoridade da liturgia:

“Além dos decretos invioláveis da Sé Apostólica, nos quais os Padres, repletos de caridade, confundindo o orgulho da novidade pestilenta, nos ensinaram a referir à graça de Jesus Cristo o início da boa vontade, o incremento dos santos desejos e a perseverança em segui-los até o fim, consideremos ainda os mistérios encerrados nessas fórmulas de orações sacerdotais que, estabelecidas pelos Apóstolos, são repetidas no mundo inteiro de maneira uniforme por toda a Igreja Católica, de sorte que a regra da crença decorre da regra da oração: ut legem credendi lex statuat supplicandi.” [6. Epístola XXI. D.S. 246.]

A lei da oração estabelece a regra da fé. O Papa Pio XII ensinou o verdadeiro sentido e alargou o alcance desse axioma, cujo fundamento ele mostra:

“A santa liturgia não designa nem constitui, em sentido absoluto e por autoridade própria, a fé católica, mas antes, sendo ainda uma profissão das verdades celestes dependente do supremo magistério da Igreja, ela pode fornecer argumentos e testemunhos de grande valor para esclarecer um ponto particular da doutrina cristã. Se queremos discernir e determinar, de modo geral e absoluto, as relações entre fé e liturgia sagrada, podemos afirmar com razão que: Lex credendi legem statuat supplicandi; que a lei da fé deve estabelecer a lei da oração.” [7. Mediator Dei, 20 de novembro de 1947. AAS 1947 p. 541.]

Assim, segundo o ensinamento da Igreja, a relação entre a fé e a liturgia é dupla: por um lado, a liturgia é fruto da fé da Igreja; por outro lado, ela é expressão da fé da Igreja. É essa dupla relação que explica aquilo que Dom Guéranger faz notar com tanta frequência: todos aqueles que quiseram mudar a doutrina da Igreja tiveram de alterar a liturgia para pô-la de acordo com os erros deles.

Precisamente, mostraremos que a reforma litúrgica derivada do Vaticano II, e mais particularmente a reforma dos sacramentos, não é nem fruto nem expressão da fé da Igreja; e que, em consequência, seu uso impossibilita o testemunho da fé que ela exige por natureza. [8. Assim, o Vaticano II torna impossível o testemunho da fé católica mediante a reforma litúrgica; o Vaticano II torna impossível a inteligência da fé católica por sua filosofia subjacente, o primado do homem e o personalismo; o Vaticano II torna impossível o exercício da fé católica, no mínimo pelo decreto sobre a liberdade religiosa.]

Recordemos que estamos analisando uma reforma: não somente os textos litúrgicos que entraram em vigor desde o Vaticano II têm significação própria, como também eles substituem outros textos e outras cerimônias. Logo, é preciso levar em consideração o sentido dos textos, o sentido das mudanças e o sentido das eventuais omissões. Tal texto ou tal rubrica que, de si, é inofensivo pode muito bem, em razão daquilo que ele suprime ou daquilo cujo lugar ele toma, ter valor de negação.

Enfim, nos ateremos mais particularmente à liturgia da Missa, porque a Missa é o ápice da liturgia – a realização perfeita do culto que nós devemos a Deus – e, sobre a Missa, a doutrina da Igreja é mais desenvolvida e mais explícita. Foi esta reforma a mais analisada e comentada. Existem numerosos estudos, de valor desigual, dentre os quais os mais interessantes são:

– o Breve Exame Crítico, que desfruta da aprovação e da apresentação dos Cardeais Ottaviani e Bacci;

– um artigo de La Pensée Catholique n.º 122: L’Ordo Missæ, com assinatura de um grupo de teólogos;

– um artigo de Itinéraires n.º 158: L’Offertoire de la Messe [O Ofertório da Missa], pelo Rev. Pe. Guérard des Lauriers.

 

2. A reforma litúrgica não é fruto da fé da Igreja

Para mostrar isso, cumpre remontar aos princípios enunciados pela constituição de Sacra Liturgia do Vaticano II, votada em 4 de dezembro de 1963 por 2.147 vozes contra 4. Essa constituição conciliar enuncia os princípios que presidiram à reforma, e prevê que a reforma irá muito além desses princípios.

A imutabilidade e inviolabilidade da liturgia importam à manutenção da fé, recordava Dom Guéranger. [9. Institutions Liturgiques, III, 458-467.] Ao contrário, o concílio vai inaugurar uma transformação total: o ritual da Missa será revisado (art. 50); será composto um novo rito da concelebração (art. 58); serão revisados o duplo ritual do Batismo (art. 66), o rito da confirmação (art. 71), os ritos e as fórmulas da Penitência (art. 72), o rito da Extrema-Unção (aa. 74 & 75), os ritos das ordenações (art. 76), o rito da celebração do matrimônio (art. 77), os sacramentais (art. 79), a profissão religiosa (art. 80), as exéquias (art. 81), as horas canônicas (art. 91) etc. Bem mais ainda, o concílio contempla uma evolução permanente. O artigo 21 restringe a imutabilidade às partes de instituição divina, sem indicar qual a sua amplitude, e diz que as outras partes estão sujeitas à mudança. A essa mudança, os artigos 23 & 40 assinalam como regra uma sábia lentidão que, sem maiores precisões, não tem nenhum alcance prático. Em contrapartida, o artigo 40 precisa que a liturgia deverá ser adaptada à mentalidade de cada povo, e também à sua comodidade, conforme o artigo 34 que decreta:

“Os ritos serão de grande brevidade e evitarão as repetições inúteis; eles serão adaptados à capacidade dos fiéis”.

Para assegurar essa evolução, decide-se a criação de comissões (aa. 23 & 40). Aí está uma das características dessa constituição: ela elimina os ferrolhos postos pela sabedoria da Igreja para impedir o aviltamento e a decadência da liturgia, e ela entrega todos os poderes para futuras comissões às quais são dispensados alguns conselhos inoperantes.

A nova liturgia está, pois, estabelecida; ela é também antropocêntrica, voltada para o homem. Isso não é enunciado francamente, mas tudo concorre para que assim seja. O artigo 33 da constituição ensina:

“Se bem que a liturgia seja principalmente o culto da divina majestade, ela comporta também (etiam) um grande valor pedagógico para o povo de Deus”.

Eis o que é próprio a nos reassegurar… há, todavia, esse também, e em toda a sequência não se tratará mais senão de pedagogia. Essa liturgia é, portanto, bipolar; falar-se-á por vezes de mesa do corpo do Senhor para designar o altar (art. 48), por vezes de mesa da Palavra (art. 51). Mas de fato é a palavra que tomou o primeiro lugar, e todos podem constatar isso; era o desejo de Lutero:

“Muitas outras coisas serão feitas com o tempo e quando o momento oportuno tiver chegado; o que importa, antes de tudo, é que a palavra adquira a proeminência”. [10. Ordnung Gottesdienst, janeiro de 1526.]

Virão confirmar esse primado de fato dado à palavra, e portanto ao homem, numerosas disposições práticas: introdução das línguas vulgares (aa. 36§2, 54 e 101), disposição do altar face ao povo, supressão da cátedra, criação de um novo ciclo litúrgico em três anos que hipertrofia a catequese (art. 51).

Os princípios dessa constituição conciliar são, no entanto, bastante vagos e fugidios, exprimidos numa hábil oscilação: guardar-se-á a tradição mas se introduzirá a novidade… Os autores da constituição são também os promotores das reformas que eles tiraram dela: isso permite saber quais eram suas verdadeiras intenções.

Na reforma do rito da Missa principalmente, ditos autores manifestaram abertamente que seus princípios são estranhos à fé católica. Sua edição do missal é, com efeito, precedida de uma longa Institutio Generalis que enuncia a doutrina conciliar sobre o santo sacrifício e os princípios que presidiram à confecção do novus ordo missæ. Dessa introdução, existem duas versões (1969 e 1970): ela foi rapidamente modificada após haver provocado alguns protestos. Reteremos a primeira versão pelas razões seguintes:

– procuramos mostrar que a reforma não é fruto da fé católica; ora, foi bem a primeira redação que enunciou aquilo de que o novo ordo é fruto, pois a segunda versão não ocasionou modificação significativa do rito;

– as Notitiæ, revistas da sagrada Congregação dos Ritos, afirmam na sua apresentação da segunda redação [11. N.º 54, maio de 1970, pp. 177-190.] que nenhum erro doutrinal foi detectado na primeira versão: a doutrina das duas é, portanto, a mesma;

– a primeira redação serviu ainda, na sequência, de referência em ao menos um documento oficial. [12. Directoire la Messe pour enfants (Diretório da Missa Infantil), 1.º de novembro de 1973. La Documentation Catholique, n.º 1645 pp. 6-12.]

Lendo com atenção essa Institutio, pode-se observar graves deficiências. Assim, não se encontra nela nem uma única vez o termo transubstanciação, nem a expressão presença real de Nosso Senhor. Fala-se aí de presença, sim, mas de modo perfeitamente equívoco, igualmente no ano litúrgico (n. 1), ou então pela leitura da Sagrada Escritura (n. 9), assim como através da palavra (nn. 33 & 35), ou ainda pela oração comum (n. 7).

O Papa Pio VI, na Constituição Apostólica Auctorem Fidei, ensinou que a palavra transubstanciação deve necessariamente ser empregada na exposição do mistério da Santa Eucaristia, e ele condenou a omissão dessa palavra como “perniciosa, prejudicial à exposição da verdade católica sobre o dogma da transubstanciação, favorecedora dos hereges”. [13. 15-28 de agosto de 1794. Denz. 1529.]

O artigo 7 ensina:

“A ceia dominical, ou missa, é a sinaxe sagrada ou reunião do povo de Deus sob a presidência do padre para celebrar o memorial do Senhor. Por isso, vale eminentemente para a assembleia local da santa Igreja a promessa de Cristo: Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles.”

Como faz notar o Breve Exame Crítico, essa definição não fala nem de presença real, nem de sacrifício, nem do caráter sacramental do sacerdote que consagra, nem do valor intrínseco do sacrifício independentemente da assembleia. É uma definição que não contém nadanada daquilo que a fé católica ensina sobre a Santa Missa.

Certamente, essa introdução fala de sacrifício noutros artigos, mas nunca o caráter propiciatório [14. Ou seja, seu valor (finalidade ou virtude) para reparar a ofensa dos pecados e tornar Deus propício.] da Missa é afirmado; não se menciona senão o sacrifício de louvor, de ação de graças, de comemoração.

O Concílio de Trento declara, porém:

“Se alguém disser que o sacrifício da Missa é somente de louvor ou de ação de graças, ou mera comemoração do sacrifício consumado na Cruz, mas que não é propiciatório (…) seja anátema.” [15. Sessão XXII, cânon 3. Denz. 950.]

O artigo 55(d), que trata do Cânon da Missa ou antes da oração eucarística, nomeia as palavras da consagração narrativa da instituição, o que muda a natureza delas, pois elas devem ser palavras sacramentais, eficazes, intimativas, e não uma narrativa. A redação desse parágrafo, ademais, dá a pensar que a missa não é nada além do dom em alimento do Corpo e do Sangue de Jesus Cristo; uma tal afirmação faz cair sob o anátema do Concílio de Trento. [16. Sessão XXII, cânon 1. Denz. 948.] Eis o texto:

“A narrativa da instituição: pelas palavras e ações de Cristo é representada a última ceia em que o próprio Cristo Senhor instituiu o sacramento de sua paixão e de sua ressurreição, quando ele deu aos seus apóstolos, sob as espécies do pão e do vinho, seu Corpo e seu Sangue a comer e beber, e deixou-lhes ordem de perpetuar esse mistério”.

Nem sacrifício, nem transubstanciação.

O caráter mais estridente dessa Institutio Generalis é o primado do homem, da assembleia, do banquete. A função do sacerdote é aí desnaturada. Certos artigos até evocam a concepção católica do sacerdote agindo in persona Christi (aa. 10, 48, 60), sem de resto precisar em que isso consiste. Mas numerosos artigos consideram o sacerdote unicamente como o presidente de uma assembleia. Assim o artigo 10, não modificado em 1970, ensina que cabe ao sacerdote recitar as orações presidenciais, das quais a oração eucarística faz parte; ele acrescenta que ditas orações presidenciais são dirigidas a Deus em nome do povo santo e dos assistentes. O sacerdote fala, pois, em nome do povo, mesmo nas palavras da consagração.

O artigo 12 afirma que a natureza das orações presidenciais (dentre as quais a oração eucarística) exige que elas sejam pronunciadas claramente e em voz alta. Ora, e inversamente, o Concílio de Trento declara:

“Se alguém disser que o rito da Igreja Romana, que prescreve que uma parte do Cânon e as palavras da consagração se profiram em voz baixa, deve ser condenado… seja anátema.” [17. Sessão XXII, cânon 9. Denz. 956.]

Assim a Institutio Generalis admite que a natureza do Cânon da Missa, e particularissimamente a natureza das palavras da consagração, foi mudada[18]. É a uma subversão do coração da liturgia, e portanto a uma mudança de religião, que nós assistimos.

[18. O Concílio de Trento ensina que é conforme à natureza do Cânon e das palavras da consagração a sua pronunciação ser feita em voz baixa. Se, em contrapartida, a natureza da oração eucarística exige que ela seja pronunciada em voz alta, é que o Cânon da Missa e a oração eucarística do novus ordo missæ não têm a mesma natureza.]

Nem uma única vez essa introdução diz que Jesus Cristo é o sacerdote principal e que o celebrante exerce um sacerdócio ministerial e segundo; a todo instante, há equivalência entre liturgia da palavra e liturgia eucarística (art. 8). O que retorna perpetuamente é a assembleia, o presidente, a ceia; é a religião do homem.

Os mesmos princípios encontram-se igualmente ao longo dos documentos que vêm interpretar ou continuar a reforma litúrgica. Assim, na carta Eucharistiæ Participationem, [19. 27 de abril de 1973. La Documentation Catholique n.º 1635, pp. 609-612.] nem uma única vez se fala de sacrifício, de transubstanciação ou de propiciação: tudo gira em torno da assembleia, do valor eclesial, da adaptação, das homilias e admoestações etc. E, se é preciso evitar o falatório, diz a carta, é porque isso engendraria o aborrecimento dos participantes. Pode-se fazer as mesmas observações acerca do Directoire pour les messes d’enfants [Diretório para as missas infantis] já mencionado.

Enfim, assim como mostra em abundância um estudo inteligentemente documentado, [20. La Dimension œcuménique de la réforme liturgique, de G. Célier. Edições Fideliter 1987.] a inspiração inata da reforma litúrgica, quer se trate do ritual da Missa ou das outras funções litúrgicas, essa inspiração intrínseca é o ecumenismo, negação da unidade da Igreja e alinhamento da doutrina católica com a heresia e a mentira.

O Vaticano II e Paulo VI enunciaram os princípios que eles empregaram na reforma litúrgica; esses princípios não são os da fé católica, eles são estrangeiros a ela e por vezes contrários, habilmente contrários a ela: por omissão. O que subjaz a essa reforma é o primado, o culto, a religião do homem. É por isso que se pode afirmar com toda a certeza que essa reforma não é fruto da fé católica.

 

3. A reforma litúrgica não é expressão da fé da Igreja

Depois do estudo dos princípios da reforma, a análise dos textos litúrgicos e rubricas – principalmente do novus ordo missæ – mostra que a nova liturgia não é expressão da fé católica. Seguiremos passo a passo o Breve Exame Crítico.

O ensinamento da Igreja sobre a natureza do sacrifício da Missa é simples e claro. O santo sacrifício da Missa é o sacrifício da Cruz consumado no Calvário na Sexta-Feira Santa, onde Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus e homem, sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque e vítima sem mácula, ofereceu-se por Sua morte a Deus Seu Pai pela redenção do gênero humano. A Missa é esse mesmo sacrifício perpetuado e tornado presente sacramentalmente sobre o altar, em virtude da dupla consagração do pão e do vinho transubstanciados no Corpo e Sangue de Jesus Cristo, pelo ministério do sacerdote.

Essa doutrina não é enunciada por modo de definição na liturgia tradicional, mas é empregada como naturalmente. A reforma do rito da Missa vai diminuir ou mesmo suprimir a expressão dela, para chegar a uma verdadeira ceia protestante que comportará uma assembleia, um banquete e uma presença espiritual de tal maneira invasivos, que o restante não aparecerá mais.

A Missa é um sacrifício, e sua finalidade última é ser sacrifício de louvor à Santíssima Trindade. Essa finalidade essencial é ocultada no novo ordo pela supressão da oração Suscipe Sancta Trinitas do Ofertório, pela supressão da oração Placeat Tibi Sancta Trinitas da conclusão e pela exclusão do Prefácio da Santíssima Trindade, que não será utilizado mais que uma vez por ano.

A Missa é o sacrifício da Cruz, o sacrifício de Jesus Cristo. Ora, se ainda se fala de sacrifício, não se trata mais do sacrifício de Jesus Cristo, que jamais é nomeado no Ofertório, ao menos não naquilo que (não) o substituiu; voltaremos a isto. O número de sinais da cruz, gesto sumamente expressivo, passou de vinte e seis a dois no Cânon. A obrigação da pedra de ara foi suprimida (Institutio Generalis n. 265); ademais, praticamente não se fala mais de altar mas de mesa, onde a cruz não tem mais necessariamente o seu lugar (n. 269) e sobre a qual uma única toalha é exigida (n. 268), em lugar das três tradicionais. O caráter santo e propiciatório da Missa é ainda encoberto pela supressão ou pela mutilação de numerosas orações nas quais se roga a Deus que nos perdoe os nossos pecados e que nos purifique: Aufer a NobisMunda CorPerceptio CorporisQuod Ore Sumpsimus (restabelecido em 1970), Corpus Tuum.

Nosso Senhor Jesus Cristo é o sacerdote principal do Santo Sacrifício. A liturgia reformada abandona o Santíssimo Sacramento, que se encontrará ordinariamente noutra parte que não sobre o altar onde se celebra (n. 276): sendo que, pelo contrário, a presença do Santíssimo Sacramento manifesta a unidade entre o sacerdote principal e o sacerdote ministerial.

Uma mudança radical na concepção da função do sacerdote é manifestada pela desaparição ou atenuação daquilo que o distingue dos fiéis: não há mais senão um único Confiteor, ao fim do qual o celebrante não dá mais a absolvição; deixa-se amplíssima liberdade quanto aos ornamentos sagrados (nn. 297-310); a comunhão do sacerdote e a dos fiéis são comuns, sendo que sua significação é totalmente diferente, pois a comunhão do sacerdote é necessária para a integridade do sacrifício.

Os sinais de adoração a Jesus Cristo realmente presente, e portanto a expressão da fé na presença real produzida pela transubstanciação, sem a qual não há sacrifício, esses sinais de fé foram diminuídos de forma considerável: as genuflexões são reduzidas ao número de três para o sacerdote, ao passo que há ao menos doze delas no rito tradicional; não há mais obrigação de purificar o local onde uma hóstia houver caído; não há mais purificação dos dedos do celebrante após a comunhão; a partir de 1967, não há mais obrigação para o sacerdote de manter os polegares colados aos indicadores após a consagração, tanto para evitar a perda de santas partículas como para evitar todo contato profano; a purificação dos vasos sagrados pode ser diferida e efetuada fora do corporal (n. 238); não há mais obrigação de ter vasos sagrados dourados a ouro, e deixa-se a mais ampla liberdade (nn. 289-296).

Mencionemos também a comunhão na mão, que não somente é ocasião de inumeráveis profanações e remove todo sinal de adoração, como ainda induz uma religião do homem ao dar a prioridade aos esforços do homem em direção a Deus, sendo que, pelo contrário, é Deus que nos amou primeiro, que se faz presente e nos inspira a recebê-lo[21].

[21. “A Presença parece responder a uma busca de Deus feita pelo homem; é essa verdade segunda que simboliza o novo rito da comunhão dos fiéis: o homem dirige-se a Deus. Em verdade, a Presença Real torna subsistente, assinalando-lhe um Termo, a busca empreendida por Deus da espera que Ele não cessa de inspirar no homem. Em verdade é Deus que primeiro Se dirige ao homem. Esta é a verdade primitiva, primeira; aquela que era significada pelo rito que tende a cair em esquecimento: Cristo aproximando-se de cada um de Seus membros para Se dar a ele pessoalmente” (Rev. Pe. Guérard des Lauriers, suplemento ao n.º 21 de Forts dans la Foi, p. 31).]

Segue-se uma atmosfera de dessacralização quase total, e de protestantização: alternam sem descanso o celebrante, o salmista (n. 67), o comentador (n. 68) (o próprio sacerdote é convidado a explicar continuamente o que ele vai fazer), os leitores homens e mulheres (n. 66), os clérigos e os leigos que acolhem os fiéis na porta os acompanham a seus lugares (n. 68), fazem a coleta, recolhem as oferendas (nn. 49 & 101) etc.

Há ainda outros elementos da liturgia que são desbaratados, como o culto da Santíssima Virgem Maria e dos santos, que desapareceu de numerosas orações ou foi tornado facultativo. Mas o mais grave reside na supressão do ofertório e na alteração das palavras da consagração.

O ofertório é esta maravilhosa oração na qual, com o pão e o vinho, o homem pecador se oferece a si próprio referindo sua oferenda ao sacrifício de Jesus Cristo que vai se realizar pela transubstanciação. Assim o Papa Pio XII ensina:

“É ali, ao pé do santo altar, onde se renova o único sacrifício que apaga os pecados do mundo, que se vê como a genuína liturgia da Igreja é a que faz dos fiéis, unidos à Vítima imaculada, uma hóstia viva, santa e agradável a Deus, na imolação generosa dos vícios e das outras más concupiscências, e na imitação d’Aquele que fez, do trono da Cruz na terra, degrau obrigatório para subir ao trono eterno da glória.”
[22. Radiomensagem ao Congresso Eucarístico de Porto Alegre (Brasil), 31 de outubro de 1948. Cf. também São Gregório Magno (Diálogo, IV, 59): “Mas é necessário que, realizando essas coisas, nós nos imolemos a nós mesmos na contrição do coração; pois nós que celebramos os mistérios da Paixão do Senhor, nós temos o dever de imitar aquilo que realizamos. Aí então, verdadeiramente, a hóstia será oferecida a Deus por nós, quando nos tivermos feito a nós mesmos hóstia”.]

Notemos a expressão de Pio XII: a liturgia genuína da Igreja. Essa liturgia faz dos fiéis hóstias vivas que, assimilando-se à hóstia do altar, tornam-se uma só coisa com Jesus Cristo que Se oferece no único sacrifício. É o ofertório que está expressamente ordenado a significar e realizar essa participação dos fiéis no sacrifício de Jesus Cristo (e assim o ofertório explica a existência da Missa, na medida em que ela se distingue do Sacrifício da Cruz). Disso, não há mais vestígio no novus ordo missæ. A oblação da hóstia imaculada e do cálice da salvação, ou seja, a oferenda de uma matéria assinalada como sendo a matéria de um sacrifício – o Sacrifício de Jesus Cristo, no qual o nosso deve ser, por assim dizer, “transubstanciado” – é suprimida e substituída por uma apresentação de pão e de vinho. Ora,

“Pretender oferecer algo a Deus, sem se referir à única oblação por direito aprovada, que é a de Cristo, eis aí realmente o que institui irremediavelmente uma ‘religião do homem’. E, queira-se ou não, é isso o que faz o novo ofertório imposto pelo novo Ordo, notadamente ao suprimir a menção feita, depois do Ofertório e no Ofertório, ao sacrifício que constituiu toda a vida terrena de Cristo”. [23. M.L. Guérard des Lauriers, o.p., Itinéraires n.º 158, p. 39.]

Assim, é a justificação da existência da Missa que é esvaziada e suprimida, é todo o sentido da participação dos fiéis que é mudado: não se trata mais de imolação interior e de união à divina vítima. Nada mais resta à nova liturgia que propor uma participação toda exterior, mundana, estrangeira à intenção de Jesus Cristo ao instituir a renovação sacramental do sacrifício redentor.

Por fim, as palavras da consagração não escaparam à fúria dos reformadores. Elas perderam o seu caráter de palavras sacramentais, realizando aquilo que significam, pois elas tornaram-se narrativas, tal como mostram sua nova denominação, sua disposição tipográfica, os comentários que acompanharam sua publicação[24].

[24. “A oração eucarística tem assim um dinamismo interno que a celebração deveria exprimir e tornar perceptível. Nesse dinamismo, as narrativas da instituição (note-se a expressão) aparecem ligadas ao todo. Na celebração elas deverão ser ditas com simplicidade, como narrativas, que adquirem aqui uma significação particular por todo o seu contexto (epiclese, anamnese)”. La Célébration de la Messe [A Celebração da Missa], Centro Nacional de Pastoral Litúrgica. Imprimatur de Dom René Boudon, Bispo de Mende, 14 de outubro de 1969. Destaque nosso.]

Ao quererem fazer delas narrativas, os reformadores modificaram-nas para fazer prevalecer a exatidão histórica (?); assim, acrescentaram quod pro vobis tradetur à consagração do pão, e suprimiram mysterium fidei na consagração do vinho. Não é espantoso que sejam estas, precisamente, as modificações que Lutero fizera? [25. Mons. Léon Cristiani, Du luthéranisme au protestantisme [Do luteranismo ao protestantismo], 1910, p. 317.]

Tanto quanto podemos julgar a seu respeito, essa nova versão das palavras da consagração exclui o Santo Sacrifício da Missa: ela não pode ser nada além de um relato ou narrativa histórica, pois se ela era exata na Quinta-Feira Santa, antes que fosse consumado o sacrifício na Cruz, ela não tem como integrar-se tal qual à Missa, ela é heterogênea a esta e fica deslocada. Precisemos este ponto, citando um estudo (inédito) do Rev. Pe. M. L. Guérard des Lauriers [26. Reflexões sobre o novus ordo missæ, pp. 34-39 do manuscrito.]:

« A “forma” tradicional (…) exprime com rigorosa exatidão as relações que ligam estreitamente Presença e Sacrifício.

A Presença é para o Sacrifício, o Sacrifício não é real senão pela Presença e na Presença. Logo, é preciso que a Presença seja realizada ANTES que o Sacrifício mesmo seja realizado. E, como é próprio à ordem sacramental significar realizando, assim como Deus conhece criando, o Sacrifício deve ser significado no momento em que é realizado, ou seja no ato mesmo da segunda consagração, e NÃO ANTES.

Ora, ele é significado pela “forma”, entendida em “sentido composto” e pronunciada integralmente. E a fórmula da segunda consagração é rigorosamente conforme à realidade, fazendo a precisão: “…do meu Sangue que será derramado por vós e por muitos”; pois o Sangue é derramado, o que quer dizer que o Sacrifício é consumado na ordem sacramental, no instante em que o sacerdote termina de pronunciar todas estas palavras: instante que é posterior àquele em que ele pronuncia “será derramado”.

(…) É impossível que, tomada em “sentido composto”, que é o sentido verdadeiro, a forma do n.o.m. “Hoc est enim corpus meum, quod pro vobis tradetur” tenha o mesmo “sentido” e o mesmo “alcance” que a forma tradicional “Hoc est corpus meum”.

(…) Recordemos, para começar, que o Sacrifício de Cristo não é renovado, na ordem sacramental, senão na segunda consagração. E que, na ordem sacramental, nem o Corpo nem o Sangue são, em sentido próprio, “entregues”; se bem que o Sangue seja “derramado”.

(…) Lançando mão do rigor de expressão que exige matéria tão grave, na Missa, o Sangue é derramado porque ele é separado do Corpo na ordem sacramental; ao passo que nem o Corpo nem o Sangue são entregues, pois permanecem unidos à Alma. Daí decorre a consequência seguinte.

Tomada em “sentido composto”, a forma “nova” não pode ter nem o mesmo “sentido” nem o mesmo “alcance” que a forma “tradicional”.

– Quanto ao “sentido”, é evidente.
Hoc est enim Corpus meum, quod pro vobis tradetur” significa efetivamente o Corpo, na medida em que este deve ser entregue. Ao passo que, como acabamos de ver, “Hoc est enim Corpus meum” significa, realizando, a Presença do Corpo, e não significa que o Corpo seja “entregue”.

– Quanto ao “alcance”.
O Corpo não sendo “entregue”, em momento algum, durante a ação consecratória, a adjunção da cláusula quod pro vobis tradetur: “que será entregue”, acarreta que, tomada em seu conjunto, ou seja em “sentido composto”, a primeira fórmula de consagração é incapaz de ter alcance real na ordem sacramental; isto é, segundo aquele tipo de realidade que é propriamente o da ordem sacramental.

É na ordem física que o Corpo esteve na situação de “dever ser entregue”, ou seja separado do Sangue e da Alma, se bem que permanecendo unido à Divindade. E, por consequência, é somente na ordem física, e é somente antes da morte na Cruz, mais precisamente na noite da Quinta-Feira Santa, que FOI conforme à realidade, ou seja verdadeira, a afirmação tomada uniformemente, em seu conjunto, ou seja em “sentido composto”: “Este é o meu Corpo que será entregue por vós”. Isso é verdadeiro considerando o Sacrifício da Cruz. Isso não é verdadeiro: e, mais ainda, isso não tem como ser verdadeiro, considerando o Sacrifício da Missa.

(…) A relação entre o Corpo e o Sacrifício não tendo a mesma estrutura na Cruz e na Missa, não surpreende que o “modo de significar” que convém ao primeiro caso seja de fato, quanto ao “alcance”, falacioso no segundo. Que uma fórmula seja “escriturária” não é suficiente para fundamentar, menos ainda para justificar, o seu emprego na confecção de um sacramento. Pretender isso é um erro, do qual a Tradição da Igreja conservou-se virgem. »

A Santa Missa foi tocada no seu próprio coração por esta reforma: o mistério da fé, a joia da Igreja foi desnaturada, profanada, protestantizada, dessacralizada naquilo que tem de mais íntimo, na sua existência mesma.

Poder-se-ia fazer um estudo análogo sobre o restante da reforma litúrgica, pois, conforme o voto do Vaticano II, nada foi poupado: o ritual dos sacramentos foi refeito, o calendário foi transtornado, o breviário volatilizou-se. Encontraríamos sempre a mesma dessacralização, a mesma atmosfera de protestantismo e de culto ao homem.

Antes de concluir, resta mostrar que sob os sucessores de Paulo VI essa reforma litúrgica continua sendo sempre a norma oficial, e que é mesmo a vontade deles a de promovê-la e impô-la: no final da instrução Inæstimabile donum, de 3 de abril de 1980, são retomadas as palavras pelas quais Paulo VI, quando do consistório de 24 de maio de 1976, reivindicava toda a responsabilidade pela reforma e manifestava claramente sua vontade:

“É em nome da tradição que nós demandamos a todos os nossos filhos, a todas as comunidades católicas, que celebrem, com dignidade e fervor, a liturgia renovada.” [27. AAS 1980 p. 342.]

Desde então, nenhum documento, nenhum ato oficial veio infirmar essa disposição geral. Pelo contrário, a encíclica sobre os 25 anos da Sacrosanctum Concilium, de 4 de dezembro de 1988, afirma que a reforma litúrgica “pode ser considerada doravante como concluída” (n. 10) e aprova globalmente essa reforma “ligada ao renovamento bíblico, ao movimento ecumênico, ao élan missionário e à pesquisa eclesiológica” (n. 4).

 Conclusão

A reforma litúrgica é alheia, nos seus princípios como em seus textos e rubricas, à fé católica: ela não é nem fruto nem expressão desta. Aí está a conclusão gravíssima que se depreende de um estudo que está bem longe de ser exaustivo. E, contudo, segundo o ensinamento de Santo Tomás de Aquino, a fé da Igreja desempenha papel capital, essencial, na parte central da liturgia: a ordem sacramental. Ele afirma, com efeito, que é a fé da Igreja que constitui os signos sacramentais como tais:

“Os sacramentos correspondem à fé: eles são protestações dela, e é dela que haurem seu poder.” [28. IV Sent. d. I q. I a. 2 sol. 5.]

“A fé [da Igreja] dá a eficácia aos sacramentos na medida em que ela conecta-os à causa principal [Jesus Cristo].” [29. IV Sent. d. I q. I a. 4 sol. 3.]

A LITURGIA REFORMADA EMANADA DO VATICANO II É CONTRÁRIA AO TESTEMUNHO DA FÉ QUE A LITURGIA CATÓLICA REQUER POR NATUREZA.

Resta estudar as consequências que é possível ou necessário tirar dessa afirmação, sobre a incompatibilidade entre a assistência divina e a promulgação de uma tal reforma, sobre a incompatibilidade entre a participação nessa liturgia e o testemunho da fé, e sobre a incompatibilidade entre as novas formas e a graça sacramental.

Isso ultrapassaria o quadro destas notas, mas é fácil de constatar que é toda a vida cristã que é posta em perigo por essa reforma, que nós recusamos absolutamente.

Deus nos conceda a graça de perseverar até o fim.

_____________

PARA CITAR:

Rev. Pe. Hervé BELMONT, A reforma litúrgica, 2011, trad. br. por F. Coelho, São Paulo, maio de 2012, blogue Acies Ordinata, http://wp.me/pw2MJ-1oq

de: “La réforme liturgique”, blogue Quicumque, documento B-3 do dossiê “Sedevacantismo” (jul. 2011).

https://magisteriodaigreja.com/a-reforma-liturgica/