A confusão dos fins do Matrimônio

I. Importância da questão

No âmbito da vida moral, a Igreja vela com grande solicitude pela santidade do matrimônio e ela empenha aí toda a sua energia, por graves razões dentre as quais as seguintes, a esmo:

— o matrimônio é um sacramento, e todo atentado contra ele atinge as fontes mesmas da graça;

— nós estamos no domínio onde a ferida do pecado original mais se faz sentir e onde a vigilância da Igreja deve, portanto, ser mais intensa;

— a santidade do matrimônio (unidade, indissolubilidade, fecundidade) está no coração da doutrina social da Igreja, e é por ela que foi estabelecido e propagado o reinado de Jesus Cristo sobre a sociedade;

— para as pessoas que vivem no estado matrimonial, a salvação eterna depende em grande parte da santidade do seu matrimônio. Não se diz que, para a maioria daqueles que o Bom Deus destinou a esse estado, é no dia do matrimônio que se decide sua eternidade? (trata-se da eternidade empenhada – pois o curso da vida subsequente depende amplamente da qualidade do matrimônio – e não da eternidade julgada. É, evidentemente, o grau de caridade na hora da morte o critério do juízo);

— a santidade do matrimônio favorece (a palavra é demasiado fraca) as vocações sacerdotais e virginais, e engendra por sua vez santos matrimônios… até à completude do número dos eleitos.

II. A doutrina católica

Primordialmente, a santidade do matrimônio requer sua retidão segundo a finalidade, e portanto uma justa subordinação de seus dois fins. Recapitulando o ensinamento constante da Igreja desde a época apostólica, o Santo Ofício recordou-o com vigor em decreto de 1 de abril de 1944:

“Ao longo dos últimos anos, apareceram certos escritos consagrados aos fins do matrimônio, às relações e à ordem desses fins entre si. Pretende-se neles que a procriação não seja o fim primário do matrimônio; ou que os fins secundários não estejam subordinados ao fim primário, mas sejam independentes dele.

Os autores dessas elucubrações definem cada qual a seu modo o fim primário do matrimônio; para um, é o complemento dos esposos e sua perfeição pessoal pela comunidade integral de vida e de ação; para outros, o amor mútuo dos cônjuges e sua união, que entretém e aperfeiçoa o dom, de corpo e alma, da pessoa; e assim por diante.

Nesses mesmos escritos, faz-se uso por vezes das palavras empregadas pela Igreja nos seus ensinamentos (como: fim, primário, secundário) dando a elas um sentido diferente daquele que lhes atribuem comumente os teólogos.

Essas inovações de pensamento e de linguagem eram de natureza a engendrar erros e incertezas. Para prevenir essas consequências, os Eminentíssimos e Reverendíssimos Padres desta Suprema Sagrada Congregação, prepostos à salvaguarda da fé e da moral, examinaram na sua assembleia da quarta-feira 29 de março de 1944, a proposição seguinte: ‘Pode-se admitir a opinião de certos modernos que negam que o fim primário do matrimônio seja a procriação e educação, ou que ensinam que os fins secundários do matrimônio não são essencialmente subordinados ao fim primário do matrimônio, mas são igualmente principais e independentes?’ E eles decidiram responder: não.

Na audiência da quinta-feira 30, do mesmo mês e do mesmo ano, concedida ao Excelentíssimo e Reverendíssimo Mestre Assessor do Santo Ofício, o Santíssimo Padre Pio XII, Papa por Divina Providência, havendo obtido o relatório de todas essas coisas, dignou-se aprovar o presente decreto e ordenou que ele fosse publicado.” AAS XXXVI (1944) p. 103.

Esse decreto do Santo Ofício trata claramente e diretamente da questão; mas ele não faz mais do que recapitular a doutrina constante da Igreja: esta se exprimiu desde Santo Agostinho (inclusive) até o Vaticano II (exceptuado) em numerosos documentos, dentre os quais: Leão XIII: Quod apostolici (28 de dezembro de 1878); Código de Direito Canônico n.º 1013 § 1 (1917); Pio XI, Casti Connubii (31 de dezembro de 1930); Discurso de Pio XII aos jovens esposos (18 de março de 1942). Mas basta abrir um compêndio de textos do Magistério nesse tópico, para ver a insistência particular dos Papas sobre essa matéria. Todo esse conjunto, e especialmente a particular solenidade da Casti Connubii, não dá lugar a nenhuma dúvida: trata-se aí de um ensinamento infalível da Igreja.

A doutrina católica é clara, certa e grave.

III. Perversão do ensinamento do Vaticano II

O Vaticano II veio embrulhar tudo. Quando fala dos fins do matrimônio, ele não menciona mais hierarquia alguma, ele os enumera sem ordem. Assim, nota-se uma oposição entre:

— Gaudium et Spes, onde procriação e educação são fim do matrimônio: “É por sua própria natureza que a instituição do matrimônio e o amor conjugal se ordenam à procriação e à educação…” [48, 1]; “O matrimônio e o amor conjugal são por si mesmos ordenados à procriação e à educação” [50, 1];
— e Lumen Gentium, onde a acolhida e educação vêm em segundo plano: “Em virtude do sacramento do matrimônio, que os faz significar, ao mesmo tempo que nele participam, o mistério da unidade e do amor fecundo entre Cristo e a Igreja, os esposos cristãos se auxiliam mutuamente a santificar-se pela vida conjugal, pela acolhida e educação da prole [n. 11].”

Esse segundo plano, o fim primeiro do matrimônio não o abandonará mais, e da maneira mais explícita:

— Código de direito canônico de 1983 [cânon 1055 § 1]: “A aliança matrimonial, pela qual um homem e uma mulher constituem entre si uma comunidade de toda a vida, ordenada por seu caráter natural ao bem dos cônjuges assim como à geração e à educação da prole, foi elevada entre batizados por Cristo Senhor à dignidade de sacramento”;
— Catecismo da Igreja Católica de 1992: nn. 1601 & 1660, que retomam o texto do cânon que acaba de ser citado; n. 1641, que cita Lumen Gentium como acima. Gaudium et Spes é citada também, mas no parágrafo sobre a fecundidade [1652] e não no que trata da natureza do matrimônio.

Embaralhamento dos fins do matrimônio, preeminência de fato para o fim secundário: o ensinamento conciliar está em divórcio com o ensinamento católico. Essa deriva não é fortuita, é a contaminação das teorias redutoras ou destruidoras do matrimônio que o Santo Ofício condenava em 1944. Ela é uma verdadeira ruptura.

Como sublinha Pio XII, essa doutrina tem consequências graves: “[…Erro] que considera o fim secundário como igualmente principal, desligando-o de sua subordinação essencial ao fim primário, o que, por necessidade lógica, conduzirá a funestas consequências” Alocução à Rota, 3 de outubro de 1941.

Também aí, o Vaticano II é a oficialização de uma nova religião.

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PARA CITAR ESTA TRADUÇÃO:

Rev. Pe. Hervé BELMONT, A confusão dos fins do Matrimônio, 2011, trad. br. por F. Coelho, São Paulo, abr. 2012, blogue Acies Ordinata, http://wp.me/pw2MJ-1jN

de: “La confusion des fins du Mariage”, blogue Quicumque, documento B-6 do dossiê “Sedevacantismo”, de 16 jul. 2011.

https://magisteriodaigreja.com/a-confusao-dos-fins-do-matrimonio/