Introdução, ou: Nem sempre a “linha-dura” é a correta

No tempo de Nosso Senhor, alguns defendiam que era errado pagar impostos ao Imperador Romano, já que Deus concedera o território da Judeia para os judeus independentemente de qualquer poder estrangeiro pagão. Os fariseus apoiavam essa opinião, tendo cerca de seis mil deles preferido a tortura e morte a pagar o imposto. Nosso Senhor e Seus discípulos eram suspeitos pelas autoridades de defender isso. Na realidade, adotaram o modo de ver mais moderado e tanto pagavam, eles próprios, o imposto como encorajavam os outros a pagá-lo também. A história chama o modo de ver rigoroso de a heresia dos galileus.

Depois da morte dos imperadores arianos, quando a paz e a ortodoxia foram restauradas na Igreja, alguns sustentaram que os bispos que haviam sido ludibriados a assinar declarações heréticas nunca mais poderiam ser reinstituídos em seus ofícios, mesmo que o erro deles tivesse sido cometido de boa fé e que professassem agora a mais absoluta ortodoxia. Lúcifer de Cagliari recusava comunhão com os que manchassem sua ortodoxia tendo comunhão com esses bispos arrependidos, os quais sempre foram ortodoxos no seu coração mas foram encurralados a fazer declarações que favoreciam a doutrina semi-ariana. O Papa, Santo Atanásio e Santo Hilário rejeitaram essa visão rigorosa, que é conhecida na história como o cisma dos luciferianos.

No século XVI, o mundo da teologia católica foi dividido em diversos campos, conforme as conflitantes opiniões adotadas sobre como explicar a ação da graça na vontade humana sem negar a liberdade humana mas sem tornar subordinada a esta a parte de Deus nas boas obras e na salvação do homem; sobre como salvaguardar a doutrina católica da predestinação divina dos eleitos sem cair no calvinismo ou jansenismo, negando a realidade da vontade de Deus de que todos se salvem ou negando que a graça suficiente realmente é suficiente. Todos os grandes teólogos da época estiveram envolvidos: Bañes, Molina, Suarez, Bellarmino, Lessius e outros. Os dominicanos opunham-se aos jesuítas, e Santo Agostinho e Santo Tomás viram-se citados por todas as partes como claramente favoráveis a esta ou aquela opinião. Os debates tornaram-se acerbos. As duas partes principais estavam cada qual convencida de que a principal opinião oposta fosse perigosa heresia. Repetidamente denunciaram uns aos outros à Santa Sé, fazendo apelo a que os seus oponentes fossem condenados e proibidos de defender as opiniões deles. Grandes teólogos e homens genuinamente santos viram-se denunciados do púlpito ou nas salas de aula como inimigos da Fé. Era imperativo que a Santa Sé tomasse uma atitude imediata e firme, diziam os protagonistas.

Todavia, depois de muitos anos de silêncio e estudo, o decreto final do Papa Paulo V sobre o assunto (Denzinger 1.090) não fez mais que permitir a cada uma das partes continuar a defender sua própria opinião, ao mesmo tempo que proibiu a todos de qualificar as opiniões opostas de heréticas ou dignas de alguma censura teológica.

Em 1801, o Papa Pio VII entrou em concordata com Napoleão Bonaparte, primeiro-cônsul da França. Por meio dessa concordata, a Fé Católica foi restaurada na França e as igrejas reabriram, mas várias concessões indesejáveis foram feitas para alcançar esse objetivo. Alguns franceses consideravam apóstata a quem quer que ousasse, destarte, reconhecer a legitimidade do regime pós-revolucionário e barganhar com os regicidas filhos da Revolução. Eles recusavam-se a entrar nas igrejas ou a reconhecer os bispos. Logo se viram sem um único padre. Mas perseveraram obstinadamente. Alguns aderentes permanecem ainda, dois séculos mais tarde, sem sacramentos ou clero, e sem nunca terem reconhecido a República. São conhecidos pela história como o cisma da Petite Église [Pequena Igreja].

Esses episódios servem para ilustrar uma única verdade: em tempos de crise e confusão, não é sempre a posição “linha-dura” a verdadeira. O nosso dever não é tender a um extremo ou outro, mas, sim, permanecer na Igreja.

A única explicação adequada para a presente crise na Igreja é a vacância da Santa Sé. Para muitos essa é, em si mesma, uma posição “linha-dura”. Isso é irrelevante. É a posição verdadeira e católica, porque é a única que dá conta de tudo o que aconteceu nos últimos quarenta anos sem comprometer a doutrina católica ou se desviar para a novidade.

Entre os que sustentam esta posição, alguns são mais “linha-dura” que os outros. Era inevitável que esta crise fizesse surgir controvérsias, tais como quais as condições exigidas para uma consagração episcopal ser legítima (se em algum caso o for) quando o acesso à Santa Sé é impossível, ou sobre como é possível obter um verdadeiro Papa. No entanto, as duas divisões mais cruciais dizem respeito às questões: (1) quem deve ser considerado católico em nossos dias?, e (2) de que sacerdotes, se é que de algum, é legítimo receber os sacramentos?

Sobre a primeira dessas questões, a posição “linha-dura” consiste em insistir que ninguém é católico se ainda não estiver convencido de que a Santa Sé está vacante, ou se estiver em comunhão com outros que não reconhecem isso, ou se tiver errado caindo em qualquer erro notável concernente ao estado presente da Igreja. Essa posição foi sustentada mais notadamente pelo Sr. Martin Gwynne, o Pe. Francis Egregyi e eu próprio. O Sr. Hutton Gibson parece estar adotando cada vez mais esse modo de ver também. Agora reconheci que essa visão está, na realidade, equivocada, e apresentei minhas razões para mudar de parecer sobre ela, numa série de artigos visando convencer outros “linha-dura” de que, sobre essa questão, a posição autenticamente católica não é tão “dura” quanto eu antes pensava.

Sobre a segunda questão, a posição “linha-dura” consiste no “home-alonism” [lê-se: “roumalounizam”, literalmente: “sozinho-em-casa-ísmo” (N. do T.)] doutrinário: a noção de que poucos ou nenhum padre podem hoje administrar os sacramentos, de modo que os fiéis devem, por isso, ficar em casa, e ofendem a Deus frequentando os centros de Missa tradicionais, seja João Paulo II nomeado no Cânon ou não. Aqui, também, o principal argumento dos “home-aloners” é baseado na noção de que os que receberam Ordens Sagradas desde o Vaticano II receberam-nas fora da Igreja. Noutras palavras, é baseado na resposta “linha-dura” à primeira questão. Por onde, meus artigos podem também ser úteis em resposta à posição “home-alone”.

John S. Daly

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PARA CITAR ESTA TRADUÇÃO:

John S. DALY, Introdução, ou: Nem sempre a “linha-dura” é a correta, ~2000, trad. br. por F. Coelho, São Paulo, março de 2011, blogue Acies Ordinata, http://wp.me/pw2MJ-6n

de: “Introduction”, http://sedevacantist.net/introduction.html

https://magisteriodaigreja.com/nem-sempre-a-linha-dura-e-a-correta/