Cacemos os cismáticos!

[A divisão em capítulos, bem como os títulos a eles atribuídos, são de responsabilidade do tradutor e por isso estão entre colchetes. (N.doT.)]

[I – INTRODUÇÃO]

[1. OCASIÃO DO ARTIGO]

Alguns novatos relançaram, recentemente, a acusação de cisma contra (a) quem adere à FSSPX, ou (b) as pessoas que crêem ilegítimos os pontificados recentes (conhecidas como sedevacantistas).

Notamos imediatamente que aqueles para quem esse julgamento é evidente tendem a ser jovens fogosos cujas intervenções não dão testemunho de um conhecimento muito profundo do direito canônico ou da teologia.

[2 – OBJETO DO ARTIGO]

Eu gostaria, por meio deste artigo, de precisar algumas razões pelas quais certos canonistas e teólogos mais sérios, ainda que submissos ao regime do Vaticano II, hesitariam porém longamente antes de dar seu aval a essa condenação.

[II – A PERTINÁCIA]

[1. SEM ELA NÃO HÁ CISMA]

É verdade que o cânon 1325 do Código de 1917, reconhecido pelos que recusam a Igreja Conciliar, define um cismático como sendo aquele que “recusa submissão ao Romano Pontífice e comunhão com os membros da Igreja a ele sujeitos”. É verdade que é impossível de afirmar que a FSSPX é realmente submissa a Bento XVI, a quem eles não obedecem em absolutamente nada. E menos ainda os sedevacantistas, que não dão a ele nem mesmo reconhecimento nominal. Mas basta consultar os autores aprovados para constatar que a recusa em questão [i.e. a recusa de submissão ao Papa que constitui cisma (N.doT.)] implica não somente o ato material mas também um elemento essencial de conhecimento e de vontade. É o que resta a ser provado mesmo por quem não enxerga nenhuma razão justa para não ser submisso aos chefes do regime conciliar.

Santo Tomás, primeiro que todos, sublinha que “os cismáticos, falando propriamente, são aqueles que se separam voluntariamente e intencionalmente da unidade da Igreja…” (Summa Theologiae II-II, 39, 1). E a célebre Bulla Coenae declara excomungados “os cismáticos e todos aqueles que se retiram com pertinácia da obediência ao Romano Pontífice.”

[2 – CONFUSÃO ATUAL QUASE A IMPOSSIBILITA]

Ora, uma circunstância excepcional, tal como uma crise ou uma reviravolta na Igreja, cria facilmente uma situação em que a recusa parcial ou total de submissão ao eleito do conclave, ou mesmo a recusa de o reconhecer em absoluto, pode não ser o fruto dessa pertinácia, dessa “intenção de se separar da unidade que é o efeito da caridade” (Sto. Tomás, loc. cit.). É por isso que os autores especializados concordam em fazer exceções:

1. “Não podem, afinal, ser contados entre os cismáticos aqueles que recusam obedecer ao Romano Pontífice por considerarem a pessoa dele digna de suspeita ou duvidosamente eleita…” (Wernz-Vidal, Ius Canonicum, vol. vii, n. 398).

2. “Não há cisma se … se recusa a obediência na medida em que … se suspeita da pessoa do papa ou da validade de sua eleição…” (Pe. Ignatius Szal, Communication of Catholics with Schismatics, Catholic University of America, 1948, p. 2).

3. “…não é cismático quem recusa submissão ao pontífice por ter dúvidas prováveis concernentes à legitimidade da eleição dele ou do poder dele…” (De Lugo, Disp.De Virt. Fid. Div., disp xxv, sect iii, nn. 35-8).

Vê-se que os “ultras” caem perfeitamente nessa categoria excepcional naquilo que se refere à atitude deles para com os pontificados conciliares.

[3 – PARALELOS HISTÓRICOS O CONFIRMAM]

A história sagrada vem em apoio dessa conclusão. Durante o “cisma” de Anacleto II e novamente durante o Grande Cisma do Ocidente, vemos a unidade da Igreja fraturada em seus acidentes sem ser destruída em sua substância pelas discordâncias concernentes à identidade do verdadeiro Papa.

[4 – EXIGE CONHECIMENTO BEM EXPLÍCITO DO MAL FEITO]

Os canonistas irão ainda mais longe, sublinhando que a contumácia necessária para incorrer na excomunhão que atinge ipso facto o cismático e o herege exige um conhecimento particularmente explícito do mal que se faz.

Assim escreve Naz:

“As palavras ‘apóstata’, ‘herege’, ‘cismático’ devem ser tomadas no sentido em que são definidas no cânon 1325§2. Recordemo-lo brevemente e para não termos mais que voltar a isto: a pena não atinge senão os delitos, portanto os atos exteriores e gravemente culpáveis. Ademais, a palavra ‘pertinaciter’ do cânon 1325§2 exime da pena aquele cujo ato herético apresenta qualquer diminuição de imputabilidade (cânon 2229§2). » (Traité de Droit Canonique, tomo IV, n. 1139)

E Vermeersch afirma:

“Se alguém comete esses pecados [apostasia, heresia, cisma] em decorrência de ignorância mesmo gravemente culpável … esse alguém está imune do delito, o qual exige a pertinácia.” (Epitome Iuris Canonici Cum Commentariis (Mechlin), ed. 5, iii, 311).

O Pe. Cance resume sua doutrina em termos similares:

“Na medida em que uma lei contém as expressões seguintes: (se alguém) presume, ousa, conscientemente, deliberadamente, temerariamente, expressa ou outras semelhantes (por exemplo pertinaciter…) toda diminuição de responsabilidade da parte da inteligência ou da vontade exime das penas latae sententiae (c. 2229§2) seja qual for a causa dessa diminuição: ignorância (grave ou leve), intoxicação, falta de diligência necessária, fraqueza de espírito…” (n. 225)

“Conforme o c. 1325§2 devemos considerar…como cismático quem recusa submeter-se ao Papa…; mas o delito…de cisma não pode atingir senão atos exteriores (públicos ou ocultos); gravemente culpáveis (portanto também interiores) e, se se trata de heresia (ou mesmo de cisma), acompanhados de obstinação… Admite-se comumente que a ignorância supina e crassa impede o delito de heresia, e parece se pode dizer o mesmo em se tratando da ignorância afetada.”

(Le Code de Droit Canonique – Commentaire, Tom. III, ed. 8, 1952, n. 273)

Numerosos outros canonistas aderem a essa doutrina, como Chelodi: Jus Poenale, p.30, n.1, M. a Coronata: Institutiones IV, p.120, n.4, Beste: Introductio in Codicem ad can. 2229§2.

[III – CONCLUSÃO]

[1. E RESPALDO PELO SILÊNCIO DA NOVIGREJA]

Penso que se compreenderá facilmente por que me parece injustificado, face a estas citações, para os “conservadores” tratar de ofício como cismáticos os tradicionalistas radicais [les tradis purs et durs; em inglês se diria: rad-trads (N.doT.)], os “ultras”, ainda mais enquanto nenhuma sentença de excomunhão foi proferida por quem quer que seja contra um Católico FSSPX ou sedevacantista se não for em razão de ter pessoalmente dado ou recebido a sagração episcopal sem mandato pontifical.

[2 – 1.ª RAZÃO: PLAUSIBILIDADE DA RETORSÃO]

Uma razão dessa reticência talvez seja o receio de que se não lhes reenvie a acusação, e não sem uma aparência de justiça.

O teólogo jesuíta Suarez (1548-1617), tão altamente louvado pelos Papas, e que deveu seu gênio a um milagre da Santíssima Virgem, não hesita em dizer que até mesmo um Papa pode tornar-se cismático, por exemplo ao abolir todas as cerimônias eclesiásticas fundadas na tradição apostólica.

“Et hoc secundo modo posset Papa esse schismaticus, si nollet tenere cum toto Ecclesiae corpore unionem et coniunctionem quam debet, ut si tentat et totem Ecclesiam excommunicare, aut si vellet omnes ecclesiasticas caeremonias apostolica traditione firmatas evertere.” (De Charitate, Disputatio XII de Schismate, sectio 1)

Não faço aqui o processo da revolução do Vaticano II. Observo apenas que mesmo protestantes e ateus compartilharam do julgamento de Dom Lefebvre de que se tratou da “destruição da Igreja a mais profunda e mais ampla de sua história no espaço de tão pouco tempo, o que nenhum heresiarca jamais conseguiu fazer” (Le Figaro, 4 de agosto de 1976).

O poder do Papa estando limitado pelo que é das tradições divinas e apostólicas e por toda a ordem doutrinal, e não existindo senão para construir, não para destruir, o autor daquilo que ele mesmo chamou de uma “destruição” da Igreja, na ordem litúrgica, disciplinar e ao menos aparentemente doutrinal (Paulo VI) não poderia se espantar de ter provocado a reação “tradicionalista” até às suas manifestações FSSPX ou sedevacantistas. Quem torna a obediência repugnante não será obedecido. Quem põe atos que parecem aqueles que implicam na perda ipso facto de seu ofício diminui seu estatuto e lança uma sombra sobre sua pessoa mesmo se de fato essa aparência for enganosa.

[3 – 2.ª RAZÃO: NOVA ECLESIOLOGIA CONCILIAR]

Uma outra razão pela qual as autoridades conciliares (obrigado ao Cardeal Benelli pela palavra) não pronunciam tão facilmente as palavras cismático ou excomunhão com relação aos “ultras” da tradição pode ser por elas já terem emasculado essas concepções a ponto de não lhes deixarem senão uma força ínfima.

Pois a nova concepção eclesiástica do Vaticano II não faz da comunhão eclesiástica um absoluto. Há, para os fiéis do Vaticano II, graus de comunhão e de catolicidade. Um cismático não está mais, segundo essa concepção, simplesmente fora da Igreja, lá onde não há salvação. Ele está numa comunhão menos plena, mas capaz de ser de uma igreja apostólica da qual o Espírito Santo se serve como meio de salvação. Como querer apavorar os “ultras” brandindo um gládio voluntariamente tornado cego?

[4 – NEM O NOVO CÓDIGO DIFERE DO EXPOSTO]

Antes de concluir este pequeno estudo, recordo que me sirvo do Código de 1917, o único em vigor durante o concílio Vaticano II e para todos os conclaves conciliares exceto o último, e o único reconhecido pelos “ultras”. Sem embargo, não creio que o Código de 1983 diga algo diferente acerca dessas questões.

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PARA CITAR:

John DALY, Cacemos os cismáticos!Le Forum Catholique, 9 de setembro de 2007, trad. br. por F. Coelho, São Paulo, maio de 2009, http://AciesOrdinata.wordpress.com/

FONTE DO ORIGINAL FRANCÊS:

“Chassons les schismatiques !”, http://www.leforumcatholique.org/message.php?num=263358

https://magisteriodaigreja.com/cacemos-os-cismaticos/