O Arcebispo Lefebvre e o Sedevacantismo
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Até onde sabemos, o Arcebispo Lefebvre nunca formou juízo definitivo de que João Paulo II não fosse verdadeiro papa. Então, se dividirmos o espectro eclesiástico em duas categorias, aqueles para quem a Sé está legalmente vacante e aqueles para quem ela está legalmente ocupada, o Arcebispo Lefebvre estaria do lado não-sedevacantista.
Mas tais divisões nem sempre ajudam. Se dividirmos o reino animal entre bípedes e o resto, nós nos veremos enganosamente próximos dos perus. Outros critérios de avaliação existem. O Arcebispo Lefebvre admitiu que os sedevacantistas podiam muito bem estar certos? Ele os considerava membros retos da Igreja? Ele confessou que o seu reconhecimento perseverante de João Paulo II devia-se mais a hesitação heroicamente cautelosa do que a alguma sólida convicção? Ele contemplou declarar a vacância da Santa Sé caso a situação continuasse inalterada? Ele insistiu que resolver a questão de se os “papas” do Vaticano II eram ou não verdadeiros papas era um dever importante, de que não se devia esquivar? Ele sustentou que o Vaticano II fosse inequivocamente cismático? Ele acreditava ser impossível interpretar o Vaticano II em sentido ortodoxo? Ele rejeitou por completo todas as reformas conciliares? Ele declarou que o Vaticano II havia fundado uma nova religião, falsa e cismática? Ele negou que os membros da nova Igreja do Vaticano II fossem católicos? Ele questionou a validade dos novos ritos da Missa, ordenação e consagração episcopal? Ele sustentou que João Paulo II e seus lacaios já estavam excomungados? Ele se rejubilou de estar separado da Igreja de João Paulo II? Ele empregou conscientemente professores de seminário sedevacantistas em Ecône, ordenou e designou ministérios a clero sedevacantista, e enviou os seus seminaristas para ganhar experiência pastoral com um sacerdote sedevacantista?
Você talvez julgue surpreendente, mesmo desconcertante, mas a resposta a todas as perguntas acima é “sim”, como logo veremos. Mas primeiro deve-se enfatizar que não estamos estudando as convicções do Arcebispo Lefebvre com a finalidade de aceitá-las como necessariamente corretas e judiciosas sob todos os aspectos. Nem tampouco negamos que outros textos aparentemente contraditórios possam ser citados dele sobre muitos desses pontos. O interesse da atitude do finado prelado para com a Igreja Conciliar está noutra parte. Voltaremos a esse assunto depois que tivermos mostrado que o Arcebispo de fato expressou as opiniões que lhe atribuímos. Para tanto, repetiremos as perguntas acima, deixando que as próprias palavras e atos do Arcebispo a elas respondam.
O Arcebispo Lefebvre admitiu que os sedevacantistas podiam muito bem estar certos?
1. “Sabem, já há algum tempo, muitas pessoas, os sedevacantistas, vêm dizendo: ‘não há mais papa’. Mas eu penso que, para mim, não era ainda hora de dizer isso, porque eu não tinha certeza, não era evidente…” (Conferência informal, 30 de março e 18 de abril de 1986, texto publicado em: The Angelus, julho de 1986)
2. “A questão é portanto definitiva: Paulo VI é, Paulo VI já foi um dia, o sucessor de Pedro? Se a resposta é negativa: Paulo VI não é, ou deixou de ser, papa, nossa atitude será a dos períodos de sede vacante, o que simplificaria o problema. Alguns teólogos dizem que tal é o caso, apoiando-se nas afirmações de teólogos do passado, aprovados pela Igreja, que estudaram o problema do papa herege, do papa cismático ou do papa que na prática abandona o seu encargo de Pastor supremo. Não é impossível que essa hipótese seja um dia confirmada pela Igreja.” (Ecône, 24 de fevereiro de 1977, Respostas a Várias Questões Candentes)
Ele aludiu com frequência e respeitosamente à explicação sedevacantista da crise?
1. “Na medida em que o Papa se afastasse da… tradição, ele se tornaria cismático, romperia com a Igreja. Teólogos como São Belarmino, Caetano, o Cardeal Journet e muitos outros estudaram essa possibilidade. Então, não é uma coisa inconcebível.” (Le Figaro, 4 de agosto de 1976).
2. “A heresia, o cisma, a excomunhão ipso facto, a invalidade da eleição, tudo isso são causas eventuais que podem fazer com que um Papa não tenha sido jamais Papa ou não mais o seja. Nesse caso, evidentemente excepcional, a Igreja se encontraria numa situação semelhante àquela em que ela se acha quando morre um Soberano Pontífice.” (Le Figaro, 4 de agosto de 1976 [trad. Gustavo Corção]).
3. “…esses atos recentes do Papa e bispos, com protestantes, animistas e judeus, não são participação ativa em culto acatólico como explicado pelo cônego Naz sobre o Cânon 1258§1? Nesse caso, não vejo como é possível dizer que o papa não é suspeito de heresia, e se ele continua, ele é herege, herege público. Esse é o ensinamento da Igreja.” (Conferência informal, 30 de março e 18 de abril, 1986, texto publicado em: The Angelus, julho de 1986)
4. “Parece inconcebível que um sucessor de Pedro possa falhar de algum modo em transmitir a Verdade que ele deve transmitir, pois ele não pode — sem como que desaparecer da sucessão papal — não transmitir o que os papas sempre transmitiram.” (Homilia, Ecône, 18 de setembro de 1977)
5. “Se acontecesse de o papa deixar de ser o servidor da verdade, ele deixaria de ser papa.” (Homilia pregada em Lille, 29 de agosto de 1976, perante multidão de cerca de 12.000)
Ele considerava os sedevacantistas membros retos da Igreja?
Sem dúvida alguma. Ele repreendeu certos padres de zelo indiscreto da Fraternidade que recusavam os sacramentos aos sedevacantistas. Ele colaborou com o Bispo de Castro Mayer depois de o prelado brasileiro ter deixado muito claro o seu sedevacantismo. Ele aceitou numerosos seminaristas de famílias, paróquias ou grupos sedevacantistas. Ele patrocinou o “Ordo” de Le Trévoux, com seu guia dos locais de culto tradicionais ao redor do mundo, o qual sempre incluiu (e ainda inclui) certos conhecidos centros de Missa sedevacantistas. Ele esteve sempre bem ciente da presença de sedevacantistas entre os padres da Fraternidade.
Ele confessou que o seu reconhecimento perseverante de Paulo VI e João Paulo II devia-se mais a hesitação heroicamente cautelosa do que a alguma sólida convicção?
1. “Ao passo que estamos certos de que a fé ensinada pela Igreja durante vinte séculos não pode conter erros, estamos muito longe da certeza absoluta de que o papa é verdadeiramente papa.” (Le Figaro, 4 de agosto de 1976).
2. “É possível que sejamos obrigados a crer que esse papa não é papa. Durante vinte anos Dom Castro Mayer e eu preferimos esperar…Penso que estamos esperando pelo famoso encontro em Assis, se Deus o permitir.” (Conferência informal, 30 de março e 18 de abril, 1986, texto publicado em: The Angelus, julho de 1986)
3. “Eu não sei se chegou a hora de dizer que o papa é herege (…) Talvez depois dessa famosa reunião de Assis, talvez devamos dizer que o papa é um herege, um apóstata. Agora, eu não desejo ainda dizer isso de modo formal e solene, mas parece à primeira vista que é impossível para um papa ser formal e publicamente herético. (…) Então, é possível que sejamos obrigados a crer que esse papa não é papa.” (Conferência informal, 30 de março e 18 de abril, 1986, texto publicado em: The Angelus, julho de 1986)
Ele contemplou declarar a vacância legal da Santa Sé se a situação continuasse inalterada?
1. “É por isso que eu suplico a Vossa Eminência…fazer tudo o que estiver em vosso poder para conseguir-nos um Papa, um verdadeiro Papa, sucessor de Pedro, em linha com seus predecessores, guardião firme e vigilante do depósito da fé. Os…cardeais octogenários têm direito estrito de comparecer ao Conclave, e a ausência imposta deles necessariamente levantará a questão da validade da eleição” (Carta a um cardeal não nomeado, 8 de agosto de 1978.)
2. “É impossível que Roma permaneça indefinidamente fora da Tradição. É impossível… Por ora, eles estão em ruptura com seus predecessores. Isso é impossível. Eles não estão mais na Igreja Católica.” (Conferência no Retiro, 4 de setembro de 1987, Ecône)
Ele insistiu que resolver a questão de se os “papas” do Vaticano II eram ou não verdadeiros papas era um dever importante, de que não se devia esquivar?
1. “…um grave problema confronta a consciência e a fé de todos os católicos desde o início do pontificado de Paulo VI: como pode um papa que é verdadeiramente sucessor de Pedro, a quem a assistência do Espírito Santo foi prometida, presidir a mais radical e extensa destruição da Igreja que já se viu, em tão pouco tempo, além do que nenhum heresiarca jamais conseguiu? Essa pergunta um dia deve ser respondida…” (Le Figaro, 4 de agosto de 1976).
2. “Agora, alguns padres (mesmo alguns padres na Fraternidade) dizem que nós, católicos, não precisamos nos preocupar com o que está acontecendo no Vaticano; nós temos os verdadeiros sacramentos, a verdadeira Missa, a verdadeira doutrina, então para que se preocupar com se o papa é um herege, um impostor ou seja lá o que for; isso não tem nenhuma importância para nós. Mas eu penso que isso não é verdade. Se há um homem importante na Igreja, é o Papa.” (Conferência informal, 30 de março e 18 de abril, 1986, texto publicado em: The Angelus, julho de 1986)
Ele sustentou que o Vaticano II fosse inequivocamente cismático?
“Cremos poder afirmar, atendo-nos à crítica interna e externa do Vaticano II, ou seja, analisando os textos e estudando os pormenores deste concílio, que este, ao dar as costas à tradição e romper com a Igreja do passado, é um concílio cismático.” (Le Figaro, 4 de agosto de 1976 [trad. FSSPX-Brasil]).
Ele sustentou que o Vaticano II fosse inequivocamente herético?
Em entrevista ao Catholic Crusader, do Sr. Tom Chapman, em 1984, o Arcebispo caracterizou expressamente o decreto sobre o Ecumenismo (Unitatis Redintegratio) como “herético”.
Ele acreditava ser impossível interpretar o Vaticano II em sentido ortodoxo?
“Concorda em aceitar o Concílio como um todo? Resposta: Ah, não a liberdade religiosa — aí não é possível!” (Conferência no Retiro, 4 de setembro de 1987, Ecône. As palavras do Arcebispo imaginam o tipo de interrogatório a que os seus seminaristas seriam submetidos se ele tivesse aceitado os termos do acordo que João Paulo II lhe oferecia, incluindo um Cardeal-Visitador com o direito de conceder ou recusar a ordenação dos seminaristas. A resposta é a que ele presume que os seus seminaristas teriam de responder, e ele prossegue explicando que tal resposta teria permitido ao Cardeal-Visitador recusar a ordenação do seminarista, razão pela qual ele recusou o acordo.)
Ele rejeitou por completo todas as reformas conciliares?
“Nós consideramos nulo…todas as reformas pós-conciliares, e todos os atos de Roma realizados nessa impiedade.” (Declaração Conjunta com Dom Antônio de Castro Mayer em seguida a Assis, 2 de dezembro de 1986).
Ele declarou que o Vaticano II e seus “papas” haviam fundado uma nova religião, falsa e cismática?
1. “Não somos nós que estamos em cisma, mas sim a Igreja Conciliar.” (Homilia pregada em Lille, 29 de agosto de 1976, perante multidão de cerca de 12.000 — essas palavras aparecem na versão original sem retoques do sermão tal como gravado e noticiado na imprensa)
2. “Roma perdeu a Fé, meus caros amigos. Roma está na apostasia. Essas não são palavras ao vento. É a verdade. Roma está na apostasia… Eles saíram da Igreja… Isso é certeza, certeza, certeza.” (Conferência no Retiro, 4 de setembro de 1987, Ecône)
3. João Paulo II “agora difunde continuamente os princípios de uma religião falsa, e isso tem como resultado a apostasia geral.” (Prefácio a Osservatore Romano 1990, de Giulio Tam, contribuído pelo Arcebispo apenas três semanas antes de sua morte)
Ele foi enérgico em afirmar que a Igreja Conciliar não é a Igreja Católica?
1. “Esse Concílio representa, aos nossos olhos e aos olhos das autoridades romanas, uma nova Igreja, que elas chamam de Igreja Conciliar.” (Le Figaro, 4 de agosto de 1976)
2. “A Igreja que afirma esses erros é cismática e é herética. Essa Igreja Conciliar, portanto, não é católica.” (29 de julho de 1976, Reflexões sobre a Suspensão a divinis)
Ele negou que os membros da nova Igreja do Vaticano II fossem católicos?
1. “Na medida em que o papa, bispos, padres ou fiéis aderem a essa nova Igreja, eles separam-se da Igreja Católica.” (29 de julho de 1976, Reflexões sobre a Suspensão a divinis)
2. “Estar publicamente associados com a sanção [de excomunhão] seria um título de honra e um sinal de ortodoxia perante os fiéis, que têm direito estrito de saber que os sacerdotes de quem eles se aproximam não estão em comunhão com uma Igreja falsificada…” (Carta Aberta ao Cardeal Gantin, 6 de julho de 1988, assinada por 24 superiores da FSSPX, indubitavelmente com a aprovação do Arcebispo Lefebvre).
Ele questionou a validade dos novos ritos da Missa, ordenação e consagração episcopal?
1. “Essa união que os católicos liberais querem entre a Igreja e a Revolução é uma união adulterina. Adulterina. Essa união adulterina só pode gerar bastardos. Onde estão esses bastardos? São [os novos] ritos. O [novo] rito da Missa é um rito bastardo. Os sacramentos são sacramentos bastardos. Nós não sabemos mais se são sacramentos que transmitem a graça. Não sabemos mais se essa Missa nos dá o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. (…) Os padres que emergem dos seminários são padres bastardos.” (Homilia pregada em Lille, 29 de agosto de 1976, perante multidão de cerca de 12.000.)
2. “Se nós pensamos que essa liturgia reformada é herética e inválida, seja por causa das modificações na matéria e forma ou por causa da intenção dos reformadores inscrita no novo rito em oposição à intenção da Igreja Católica, evidentemente não podemos participar nesses ritos reformados, pois estaríamos participando num ato sacrílego. Essa opinião é fundada em sérias razões…” (Ecône, 24 de fevereiro de 1977, Respostas a Várias Questões Candentes)
3. “As mudanças radicais e extensivas feitas no Rito Romano do Santo Sacrifício da Missa e sua semelhança com as modificações feitas por Lutero obrigam os católicos que permanecem leais à sua fé a questionar a validade desse rito novo. Quem melhor que o Reverendo Padre Guérard des Lauriers para fazer uma contribuição informada para a resolução desse problema…?” (Prefácio escrito para um livro do Pe. Guérard des Lauriers em favor da tese da invalidade. Écône, 2 de fevereiro de 1977)
4. Ademais, o Arcebispo Lefebvre pessoalmente reordenou condicionalmente muitos padres que haviam sido ordenados no rito de 1968 e reconfirmou aqueles que davam mostra de terem sido confirmados no novo rito ou pelos novos bispos.
Ele sustentou que João Paulo II e seus lacaios eram “anticristos” excomungados?
1. “Então estamos para ser excomungados por modernistas, por gente que foi condenada por papas anteriores. Então o que isso pode fazer realmente? Nós somos condenados por homens que, eles próprios, estão condenados…” (Conferência de imprensa, Ecône, 15 de junho de 1988)
2. Declaração pós-consagração (Verão de 1988), escola da FSSPX em Bitsche, na Alsácia-Lorena: “o arcebispo declarou, indo ainda além até mesmo do que sua conferência de imprensa de 15 de junho, que aqueles que o haviam excomungado já estavam excomungados faz tempo” (Resumo em: Notícias e Opiniões, da Associação da Contra-Reforma [Counter-Reformation Association’s, News and Views], Festa da Candelária, 1996)
3. “Com a Sede de Pedro e os postos de autoridade ocupados por anticristos, a destruição do Reino de Nosso Senhor está sendo levada a cabo rapidamente mesmo no interior de Seu Corpo Místico aqui embaixo (…) Foi isso que fez desabar sobre nossas cabeças a perseguição por parte da Roma dos anticristos.” (Carta aos futuros bispos, 29 de agosto de 1987)
Ele se rejubilou de estar separado da Igreja de João Paulo II?
1. “Nós fomos suspensos a divinis pela Igreja Conciliar e da Igreja Conciliar, à qual não temos nenhum desejo de pertencer.” (29 de julho de 1976, Reflexões sobre a Suspensão a divinis)
2. “…nós não pertencemos a essa religião. Nós não aceitamos essa nova religião. Nós pertencemos à antiga religião, a religião católica, não a essa religião universal como é chamada hoje. Esta não é mais a religião católica…” (Sermão, 29 de junho de 1976)
3. “Eu ficaria contentíssimo de ser excomungado por essa Igreja Conciliar… É uma Igreja que eu não reconheço. Eu pertenço à Igreja Católica.” (Entrevista, 30 de julho de 1976, publicada em: Minute, n.º 747)
4. “Nós nunca quisemos pertencer a esse sistema que chama a si próprio de Igreja Conciliar. Ser excomungado por um decreto de vossa eminência… seria a prova irrefutável de que não pertencemos mesmo. Não pedimos nada melhor do que sermos declarados ex communione…excluídos da ímpia comunhão com infiéis.” (Carta Aberta ao Cardeal Gantin, 6 de julho de 1988, assinada por 24 sacerdotes proeminentes da FSSPX, indubitavelmente com a aprovação do Arcebispo Lefebvre)
Ele empregou conscientemente um professor de seminário sedevacantista em Ecône, ordenou e atribuiu ministérios a clero sedevacantista, e enviou seus seminaristas para ganhar experiência pastoral com um sacerdote sedevacantista em seu acampamento de verão com um mês de duração todo ano?
Ele fez isso, sim. Não correremos o risco de pôr os perseguidores nos calcanhares dos envolvidos nomeando pessoas que, em muitos casos, são ainda sedevacantistas e ainda membros da FSSPX ou colaboram com ela. Qualquer sacerdote que esteve em Ecône nos dias do Arcebispo pode confirmar nossa resposta.
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As citações e fatos acima apontam para um Lefebvre linha-dura, muito próximo do sedevacantismo, rejeitando totalmente o Vaticano II, os novos sacramentos e doutrinas e a comunhão com os líderes da nova religião pseudo-católica. É, porém, nada mais que honesto conceder que essa é apenas metade da história. Outras palavras e atos do Arcebispo dariam impressão espantosamente diferente.
Seria ocioso debater qual foi o verdadeiro Arcebispo Lefebvre. O fato evidente é que o Arcebispo oscilou. Constante sem vacilações sobre o fato de que uma nova e falsa religião havia sido fundada, ele hesita sobre se o papa da nova religião pode ser também cabeça da Igreja Católica. Escândalos específicos provocam forte reação da parte dele: a suspensão de 1976, o Sínodo de 1985, a algazarra de religiões falsas de Assis em 1986, a excomunhão de 1988 — tudo isso o traz até à borda da declaração explícita de que os responsáveis não podem ser papas. O contato próximo com homens como o Pe. Guérard des Lauriers e o Bispo de Castro Mayer, e com livros como o de Arnaldo Xavier de Silveira, encorajam-no na direção de uma tal declaração. Em posição de mergulho, ele hesita… e recua.
Não podemos com justiça forçar os fatos para fazer do Arcebispo Lefebvre um sedevacantista, pois ele não o foi, mas podemos com justiça e respeitosamente extrair diversas conclusões interessantes dos nossos textos e de outros extensos demais para citar neste artigo.
1. De 1975-8, e de 1985 até a morte dele, o Arcebispo Lefebvre não foi hostil ao sedevacantismo como tal e parece ter concedido a este a condição de, o que os teólogos chamariam, uma “opinião provável”. Ele frequentemente chegou perto de compartilhar dessa opinião, nunca pretendeu ser capaz de refutá-la cabalmente, e ele reconheceu que ela bem poderia um dia tornar-se suficientemente clara para ele a aceitar firmemente.
2. Nem mesmo os mais ardentes admiradores do Arcebispo poderiam alegar que as declarações dele relativas aos recentes pretendentes ao papado sempre foram claras, firmes e coerentes ou que demonstraram conhecimento detalhado da Teologia e Direito Canônico relevantes.
3. Embora ciente da controvérsia clássica sobre o “papa herege” entre os teólogos, o Arcebispo não parece ter feito em nenhum momento estudo sério da natureza da heresia, seus efeitos e seu reconhecimento. Ele até mesmo chegou a pensar que o liberalismo extremo de Paulo VI e João Paulo II fosse, em algum sentido, defesa contra a acusação de heresia. Ele queria dizer que a mente deles estava demasiado cheia de ideias heréticas para que eles fossem insinceros em crê-las ortodoxas. Não lhe parece ter ocorrido que uma tal “defesa” teria estado igualmente disponível a tipos como Lammenais e Loisy.
4. Ele era convicto de sua competência para reconhecer e denunciar as heresias do Modernismo e Liberalismo, mas estava ciente de carecer da formação teológica necessária para ser capaz de avaliar o status dos Joões e Paulos, a dificuldade que a crise apresenta com respeito à indefectibilidade da Igreja e a infalibilidade do Magistério Ordinário e Universal.
5. O treinamento dele no seminário no Colégio Francês em Roma sob o celebrado Padre Le Floch vacinou-o para sempre contra o Liberalismo em todas as suas formas. A carreira eclesiástica dele preparara-o para a organização e a diplomacia. Mas nem uma coisa nem outra haviam feito dele um teólogo especializado ou dado a ele noção alguma de ser um. Isso é manifesto no seu papel de defensor da tradição no Concílio e posteriormente: ele organiza e negocia com habilidade, mas é incerto na avaliação teológica de eventos anteriormente inimagináveis. Ele havia dependido pesadamente — e por ótima razão — de seu consultor teológico profundamente douto e santo, o Pe. Victor-Alain Berto, responsável por muitas das intervenções do Arcebispo no Vaticano II, mas Berto morrera em 1968, sucumbindo à angústia da apostasia do Vaticano II. Lefebvre nunca mais encontraria um consultor em que pudesse confiar totalmente, mesmo quando mais precisou de um.
6. O reconhecimento nominal de Paulo VI e sucessores pelo Arcebispo foi apresentado explicitamente como posição provisória. Aqueles que a erigiram em dogma imutável são, portanto, infiéis ao Arcebispo.
7. O Arcebispo Lefebvre foi altamente otimista nos primeiros anos de João Paulo II e foi nesses anos que ele foi mais incisivo em suas palavras e atos anti-sedevacantistas. Porém, mesmo então ele nunca expulsou nenhum padre de sua Fraternidade por sedevacantismo privado e somente duas vezes até mesmo por sedevacantismo público na ausência de outras questões. A política geral dele era persuadir os padres sedevacantistas a permanecer. E, com o Sínodo de 1985 e Assis em 1986, ele foi desenganado de sua ilusão de que se poderia fazer “polaco” rimar com “papa”.
8. Ninguém tem como ter certeza de que, se o Arcebispo Lefebvre estivesse vivo hoje, ele não seria sedevacantista. Ninguém tem como ter certeza de que ele seria um, tampouco. Mas o que parece altamente improvável é que ele teria adotado o estilo anódino do Bispo Fellay e da ala esquerda dominante da Fraternidade, para os quais, em nossos dias, expressões como “anticristos excomungados” é mais provável sejam alusão aos sedevacantistas do que aos ocupantes aparentes da Sé Romana. E outra noção igualmente improvável é que ele teria sido ludibriado a considerar Josef Ratzinger, que ele cordialmente detestava, amigo sincero do Catolicismo tradicional.
9. É possível simpatizar com o apuro do Arcebispo enquanto contemplava, sozinho, o gravíssimo aspecto eclesiológico da crise — o aspecto sobre o qual ele sentiu-se incapaz de se decidir; de fato, seria impiedoso não se compadecer. Defender a fé, assegurar a continuidade do sacerdócio e a disponibilidade dos sacramentos para os fiéis, mas deixar “em espera” a difícil questão do status dos assassinos de almas no Vaticano: por mais que o possamos lamentar, essa é ao menos uma política compreensível. Certos jovens sedevacantistas levianos de nossos dias, sem nenhum dom de visão retrospectiva e rápidos em atribuir culpa, claramente não conseguem imaginar o peso da responsabilidade sentido pelo Arcebispo ao contemplar, tremendo, a enormidade do que o sedevacantismo implicava.
10. O que parece bem mais difícil de endossar é a consequente política de pragmatismo pela qual uma posição de que o próprio Arcebispo não tinha certeza tornou-se oficialmente obrigatória na Fraternidade, para manter a unidade e aerodinamizar o apostolado da Fraternidade. Como todos os homens, os padres necessitam poder conversar livremente com seus pares sobre suas preocupações e suas dúvidas, sem temor de denúncia por “crime de pensamento” e possíveis sanções. O Arcebispo malogrou em proporcionar as condições para isso, e elas ainda não existem na FSSPX. Uma consequência é a fraqueza de caráter de muitos padres da FSSPX — resultado inevitável de treinamento sectário. Outra é a taxa massiva de deserção da Fraternidade: alguns tornaram-se sedevacantistas, outros aceitaram o indulto, alguns viraram independentes, outros saíram para “casar” e alguns sucumbiram a colapsos nervosos — todos dão testemunho do problema de pressão interna da Fraternidade.
Vimos que não há verdade alguma na mitologia segundo a qual o Arcebispo Lefebvre tinha uma política firme e consistente de reconhecimento dos papas do Vaticano II, rejeitando inflexível e consistentemente o sedevacantismo como um erro solidamente refutado. Pelo contrário, o Arcebispo frequentemente expressou pareceres tão linha-dura, que hoje nenhum padre ou seminarista da FSSPX ousaria dizer algo similar, por medo de expulsão! A mitologia deve-se ao fato de que o Arcebispo flutuou e hesitou, deixando registro de palavras e atos que permitem seja ele invocado tanto pelo grupo liberal quanto pelo grupo linha-dura. De fato, as flutuações e hesitações dele foram de magnitude tal, que apenas foram toleradas em razão da grande veneração pessoal que a massa dos fiéis católicos tradicionais sentia pelo próprio Arcebispo. E hoje a Fraternidade não tem mais nenhum membro proeminente cuja personalidade ou posição eclesiástica sejam comparáveis às do Arcebispo. Assim, a necessidade de credibilidade por parte da Fraternidade exige que ela mostre mais consistência do que o próprio Arcebispo mostrou, ao mesmo tempo que continuando a invocar a autoridade dele para decisões que ninguém é capaz de sentir qualquer confiança de que ele teria aprovado.
Sejamos francos sobre as origens dessa situação. O apostolado tradicionalista independente da FSSPX foi originalmente intencionado apenas como socorro provisório para uma necessidade temporária. Compreensivelmente, ninguém anteviu a duração da crise. Medidas emergenciais às vezes precisam ser tomadas antes de haver tempo para uma avaliação teológica completa da necessidade que as exige. Mas não pode haver apostolado duradouro e eficaz que não esteja firmemente alicerçado na teologia. Isso não significa meramente que apóstolos eficazes devem ter formação adequada em teologia, se bem que isso é verdade. Significa que o fundamento, a natureza, as ações e os objetivos do próprio apostolado deles também precisam ser determinados teologicamente. Isso não é nem nunca foi o caso da FSSPX, pois o legado do Arcebispo para a Fraternidade que ele fundou não inclui nenhuma eclesiologia da relação da Igreja Conciliar com a Igreja Católica. O mal-estar com a FSSPX continuará até que essa omissão seja totalmente retificada, se isso é possível.
E esse mal-estar não pode ser negado. Há um quarto de século, a FSSPX estava atolada de vocações, tinha alto nível de lealdade sacerdotal e estava em posição de contrastar o seu sucesso com o estado manifestamente miserável dos seminários e clero modernistas. Todos sabem que a ufania cessou. Menos vocações, taxas muito altas de desistência e expulsão nos seminários, numerosas deserções sacerdotais em todas as direções, escasso sinal de uma elite teológica entre o clero da Fraternidade, tolerância a padres infectados com o comichão da inovação, altas taxas de defecção leiga de segunda geração mesmo entre aqueles educados nas próprias escolas da Fraternidade — a triste história é inegável e as coisas não estão melhorando. Enquanto isso, a Fraternidade está perdendo o debate teológico não somente com o sedevacantismo, mas também com os grupos indultistas, que mostraram notável poder de atração e capacidade surpreendente de produzir clero douto e reflexivo.
Para a FSSPX, de modo público e formal, declarar a vacância da Santa Sé exigiria um milagre e fazer isso não bastaria para curar o mal-estar que apontamos.
Mas talvez não seja completamente irrealista cogitar se as autoridades da Fraternidade não poderiam um dia admitir explicitamente que o sedevacantismo é pelo menos uma opinião teologicamente provável e encorajar o debate cortês e aberto sobre a tese sedevacantista entre padres e fiéis dentro da Fraternidade e fora dela. Talvez não fosse incuravelmente otimista ter esperança de que os padres e colaboradores sedevacantistas da Fraternidade possam ter a liberdade de ser francos sobre suas convicções. Uma declaração poderia ser feita realçando que, em quaisquer discussões com a Roma ocupada, Bento XVI não é capaz de pôr nada de valor do seu lado da mesa de negociações exceto a perspectiva remota de sua própria conversão à Fé Católica que ele passou a maior parte da vida destruindo. Enquanto estamos sonhando acordados, podíamos imaginar uma colaboração entre padres da FSSPX e aqueles padres sedevacantistas que possam ser adequados e estar dispostos. Poderíamos acrescentar a expulsão da quinta-coluna ultra-liberal da Fraternidade — a começar pelo Pe. Grégoire Célier —, e que tal repudiar publicamente o panfleto anti-sedevacantista absurdamente ignorante do Pe. Boulet, panfleto este que se vê na necessidade de citar teologia e história falsificadas de um livro no Índex dos Livros Proibidos, para defender o que seu autor acredita ser a linha do partido? Nem poderia alguém razoavelmente objetar ao estudo formal do De Romano Pontifice de Bellarmino no programa de estudos de teologia dogmática.
Não se pode duvidar seriamente de que tais medidas seriam sólidas em teologia, um alívio para muitos dos sacerdotes e fiéis da Fraternidade e fortaleceriam a capacidade da Fraternidade de responder às objeções que lhe são feitas dos quartéis conciliares. Nem haveria dificuldade alguma em invocar a autoridade do Arcebispo Lefebvre a favor de tais iniciativas. Acima de tudo, dever-se-ia considerar que a verdade é mais importante do que o pragmatismo e que sua profissão corajosa merece a bênção de Deus.
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Para Citar:
J.S. DALY, O Arcebispo Lefebvre e o Sedevacantismo, 2006, trad. br. por F. Coelho, São Paulo, fev. 2010, blogue Acies Ordinata, http://wp.me/pw2MJ-iB
de: “Archbishop Lefebvre And Sedevacantism”, The Four Marks, out. 2006.